07/04/2014
Francisco Daudt
O que aconteceu com a morte, que nem é mais permitida aos animais que sofrem, que dirá a nós humanos?
"Ele tem dezesseis anos, um câncer de boca horroroso, aberto, fedendo, mal anda por causa das metástases, mas o médico disse que faz a remoção da mandíbula e uma abertura no estômago para ele se alimentar. Eu queria que ele morresse logo, não tenho dinheiro, mas... e a culpa?"
Meu choque diante dessa história é que se trata de um cão mais que centenário, sofrendo, alugando e atormentando a vida da minha paciente.
O que aconteceu com a morte, que nem é mais permitida aos animais que sofrem, que dirá a nós humanos?
Ano de 1973, um dos meus pacientes no Hospital de Bonsucesso era um velhinho caquético com câncer de fígado que finalmente teve uma parada cardíaca na minha frente.
Iniciei logo os processos de reanimação (massagem cardíaca etc.). Debalde. O chefe de clínica, meu hoje amigo Prof. Alvariz, me chamou: "Daudt, aquilo não se chama parada cardíaca. Chama-se MORTE. É necessário saber a diferença".
Parece que nós médicos em particular, e a sociedade em geral, perdemos a noção dessa preciosa diferença, e estamos infligindo um tormento artificial a nós mesmos e aos infelizes sob nossos cuidados.
Aos médicos, a diferença não é ensinada nas faculdades. Pelo contrário. A morte é vista como uma inimiga a ser combatida a quaisquer "custo$", saído dos nossos bolsos (impostos e sua bitributação, os planos de saúde).
E o inferno não atinge só os terminais. Meu horror aumentou ao perceber que ele se estende aos iniciais que não deveriam ter iniciado.
A mãe natureza vem expulsando embriões inviáveis desde sempre, em diversas fases da gestação, tanto que há um número considerável de abortos espontâneos que se passam por atrasos menstruais.
Mas uma gravidez de dois meses que se desfaz provoca lágrimas, ao invés de alívio. O aborto de fetos anencéfalos foi consentido a duras penas, e ainda revolta muitos.
A compulsão de "salvar vidas" atinge prematuros malformados (outrora inviáveis) ao ponto de vegetarem por meses ou anos até que sua "parada cardíaca" não possa mais ser impedida, aprisionando e desgraçando familiares pobres, que a eles ficam acorrentados nos institutos.
Os médicos deste circo de horrores têm um lema sinistro: "No meu plantão, não!" E se desdobram em manobras heroicas para prolongar a existência daquele ser sem perspectivas, com a crueldade adicional de dar esperança às famílias.
Philippe Ariès conta, em seu "História da morte no Ocidente", como ela acontecia até há pouco.
Morria-se em casa, sabendo que se ia morrer, cercado de carinho da família, dizendo suas últimas palavras, num rito de despedida que incluía a morte como parte da vida, e como um momento digno.
Hoje, varremos nossos moribundos para debaixo de um CTI, que nos "poupa de assistir o horror".
Pude proporcionar esse momento digno à minha mãe de 95 anos. Ela já estava na maca para ser levada à ambulância quando cheguei. "Podem voltar, que ela quer morrer em casa". O médico apertou minha mão, solidário e comovido.
Posta em sua cama, minha mãe disse, "Que bom, voltei ao meu cantinho". E morreu como queria.
Artigo escrito pelo médico psicanalista Francisco Daudt.
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