22/12/2008
Como há 2000 anos...
José vem à cidade grande para o parto de Maria e para a vida nova. Mestre de obras? Sonhou! Bastaria seu ofício - carpinteiro
-, pois o importante é o trabalho, tão escasso nesses tempos. Sós na metrópole, foi difícil conseguir informações, pois as
pessoas, indiferentes e apressadas, estavam para pouca prosa. Apenas uma orientou o endereço do parente na vila distante.
Entre erros e acertos, chegou até o ponto de ônibus, depois outros e mais uma longa caminhada. Penosa pelo avançado estado
da gravidez.
Enfim chegaram. Casa pobre, de muitas crianças e pouco espaço, a mesma situação nos vizinhos amigos, mas conseguiram pequeno
quarto de fundos. Poucas horas mais tarde, Maria despertou com dores. Apesar do cansaço, sua beleza contrastava com aquele
rude local. José aproximou-se, abraçou-a e com um beijo no seu ventre disse: "Aqui está nosso rei. Confie!"
Iniciaram o caminho de volta, interrompido a cada nova dor. Finalmente o hospital-maternidade indicado, mas, na recepção,
a placa indicativa de "não temos vaga". Receberam novo endereço, mas a mulher também não fora admitida porque não fizera o
pré-natal e não havia vagas no berçário. Ao passar defronte a terceira maternidade, José entrou novamente, mas não atendiam
pelo SUS.
As dores eram mais freqüentes. Então, na quinta maternidade, um alívio: após entrevista e triagem, conseguiu guia de atendimento.
Com dificuldade, pois não tinha referência e residia fora do município. A espera interminável, as contrações mais intensas,
mas ainda havia disposição de confrontar - naquele corredor de ansiedades, angústias e histórias tristes - as outras grávidas
e dar esperança e fé.
Em seguida uma chamada; "Maria, filha de Ana!". Com dificuldade levantou-se, pés inchados. Assim que iniciou seus passos,
mais ordens ríspidas: "Rápido, é pra hoje!" Ao entrar na sala de exame, parou para suportar outra contração e um comentário
infeliz: "Deixa de fricotes! Está muito manhosa". Perguntas rápidas e apenas necessárias, demonstrando uma atitude essencialmente
profissional, desprovida de qualquer afeto.
Ao exame do ventre da paciente, o médico foi tomado por uma forte emoção e um sentimento diferente, estranho mesmo. Pensou
em partilhar aquela sensação, mas reprimiu. Novamente volta o perfil frio e técnico, sem qualquer preocupação com as condições
e o local da moradia e falou: "Não está na hora. Não é para hoje. Vá para casa". E não deu qualquer chance de perguntas.
Maria levantou-se sem ajuda, amparo ou apoio para sair da mesa. Encontra o aflito José e, resignados, retornam. Parece
um caminho novo. É noite, muitos enfeites, neon, muitas luzes nas árvores e residências. Um espetáculo maravilhoso. Brilho
intenso que vai diminuindo à medida que se aproximam do bairro.
Depois, uma lâmpada fraca iluminando aquele abafado e
pequeno quarto. As dores são mais fortes e freqüentes; suor, muito calor que aumentou ao sentir um líquido quente em suas
vestes e pernas.
Maria lembrou sua prima e imaginou: é chegada a hora.
José sai em busca de ajuda. Encontra a agente de saúde, que em seguida, avisou a médica de família daquela comunidade.
Esta deixa a ceia natalina com os filhos e prontamente dirige-se para o atendimento. Ao ver a paciente, identificou-se: "Eu
sou Isabel, sua médica". Maria respondeu que era o mesmo nome de sua prima e permitiu que a médica conduzisse um diálogo fraterno,
perguntando sobre sua procedência, número de filhos, história familiar e faz outras abordagens para reassegurar a confiança,
em um momento crítico, pleno de ansiedades e medo que é o parto.
A Dra. Isabel aprendeu que palavras de cortesia e a postura médica são medidas terapêuticas que promovem tranqüilidade
e fortalecem a relação médico-paciente. Ao tentar utilizar dessa estratégia e levar essa energia, em sentido contrário recebia
de Maria reflexos de luz de um forte brilho, como se seus raios penetrassem pela primeira vez em uma gruta escura. Essa era
a luminosidade daquele quarto. Deu-se o nascimento da criança, semelhante a uma fonte de água, que brota natural, cristalina,
forte, que dá vida e onde todos devemos beber.
A Dra. Isabel, ao segurar o pequeno ser, sentiu-se maravilhada e confusa. Maravilhada pela sensação de paz, de esperança
e amor transmitida pela proximidade daquela mãe e de seu rebento. Confusa porque o choro daquele bebê penetrava em sua alma
como um grito de alerta, um pedido de ajuda. Não para si, mas para a humanidade, atualmente tão desacordo com estes sentimentos.
Quantas crianças como esta morrem todos os dias pela miséria, pela violência, pela intolerância dos que poderiam ajudar e
não o fazem.
Ao entregar o recém-nascido nos braços de sua mãe, a jovem doutora teve a certeza de que sua vida a partir de então teria
um significado maior, e sentiu-se responsável pela semente de esperança que ora desponta em seu coração. Prometeu à si e aquela
singela família que esta semente seria cuidada e multiplicada a todos os seus colegas, numa corrente de amor ao próximo, de
solidariedade e de respeito àqueles que sofrem a dor física e moral das injustiças que a vida lhes impõe.
Ao despedir-se, recebeu um agradecimento em nome de todas as Marias. José beijou suas mãos e ofereceu duas pombas como
presente, representando a paz que deve reinar entre todos os homens de boa vontade. Ao sair, viu uma estrela guia. Lembrou-se
que era Natal e agradeceu a Deus o privilégio de ter sido a escolhida entre as mulheres. Agradeceu também por ser médica e
ser o instrumento para o alívio da dor e do sofrimento de seus semelhantes. Pediu para continuar exercendo a profissão dentro
dos princípios éticos e humanitários.
Neste milênio as mensagens de esperança sejam reais e que a dureza dos últimos 2000 anos seja aliviada e a paz permaneça
pela eternidade. Que todos os médicos tenham o espírito, o compromisso e a atitude da jovem doutora para o próximo milênio.
Aos gestores, a lucidez e a criatividade para a promoção da saúde, acabando com as injustiças e que a história de dificuldade
não se repita como ocorrida há dois mil anos.
Artigo de autoria do conselheiro do CRMPR Luiz Sallim Emed. O texto foi publicado na edição de dezembro de 2000
do Jornal do CRMPR.