27/09/2022

Cobrar é sinônimo de receber?

Eduardo Murilo Novak

Os médicos com a numeração de CRM entre três e quatro dígitos lembrarão que num passado não muito distante a cobrança direta de pacientes atendidos pelo então regime previdenciário era perfeitamente possível. A conhecida “complementação” de honorários e por acomodação superior era institucionalizada por meio de Portaria do extinto Inamps, de 1974, e nada havia de errado com isso, portanto.

Com o advento da Carta de 1988, em que se estabeleceram as diretrizes do sistema público de saúde, e após, em 1990, com a lei que regula as ações e serviços sanitários pautando-se na integralidade, equidade e universalidade, o cenário foi modificado. A Resolução 283 definiu a gratuidade completa da internação. Por conseguinte, o administrado passou então a não mais ter a alternativa de complementar, monetariamente ou por qualquer outro modo de vantagem, nenhuma ação quando atendido pelo SUS, seja a título de honorários profissionais ou pelo uso de equipamentos, seja por diferença de acomodação ou uso de material cirúrgico, o chamado OPME.

Nessa esteira, o Código de Ética Médica amoldou-se e, atualmente, é taxativo no atual art. 66 ao vedar: “Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à prestação de serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como complemento de salário ou de honorários.”

Inobstante, são diversos os casos que chegam aos Conselhos de Medicina envolvendo essa prática ilegal. Muitas justificativas vêm sob o espectro “eu aventei com o paciente ou familiar essa hipótese, mas nada recebi", ou "nada transitou pela minha conta bancária, então não está caracterizada nenhuma infração”.

Mas o que seria o verbo “cobrar”, presente no art. 66? Ora, é cristalino que “cobrar” é diferente de “receber”. Basta observar que em diversas acepções dos dicionários cobrar significa “pedir (determinada quantia) por produto ou serviço oferecido e/ou realizado”, “exigir, solicitar (o pagamento do que é devido)”, “exigir o valor de”.

Desse modo, “receber” seria mero exaurimento. Explica-se. Na doutrina penal, os delitos que se consumam sem a produção do resultado naturalístico são os chamados formais (solicitar, por exemplo, algo indevido), e aqueles que somente se consumam com a produção do resultado são os ditos materiais (receber, efetivamente). Se um agente público solicitar uma vantagem indevida para praticar tal ato já estará configurado um crime. Receber seria ordinariamente um exaurimento, o que corresponderia à etapa final, ao esgotamento do denominado iter criminis: cogitar, preparar, executar e consumar.

Logo, desnecessária a comprovação de recebimento para que reste caracterizada a infração ética. A simples constatação de que houve a cobrança diretamente já consuma o ilícito. Nesse caso, se por circunstâncias alheias à vontade do agente não houve o recebimento, não há falar-se em "tentativa", pois a consumação se deu com a mera solicitação ou mesmo exigência de vantagem. Tentativa seria se, por exemplo, o agente escrevesse uma mensagem ao destinatário, mas, por um problema qualquer, tal não tivesse sido entregue. Aí sim o delito não se consumaria, pois a vantagem não teria sido solicitada. Não é o caso para o exemplo mencionado. É suficiente a solicitação. Basta, portanto, essa cobrança. O recebimento nada mais seria do que exaurimento.

*Eduardo Murilo Novak é médico (CRM-PR 16.521), especialista em Ortopedia e Traumatologia e Cirurgia de Mão, mestre e doutor em Cirurgia, conselheiro do CRM-PR e professor de Ética e Bioética em cursos de formação médica.
**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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