12/08/2019
Dr. Tirone Esperidião David (CRM-PR 2.324), formado pela UFPR em 1968 e radicado há mais de quatro décadas no Canadá, é autor de técnica conhecida por cirurgiões de todo o mundo
Pergunte a um cirurgião cardíaco de qualquer nacionalidade se ele conhece uma técnica chamada “David Operation” e ele provavelmente dirá que sim. O que esse profissional possivelmente não saberá dizer é que o autor da referida técnica é um médico paranaense, natural da pequena cidade de Ribeirão Claro, localizada no Norte Pioneiro do Estado. O Dr. Tirone Esperidião David (CRM-PR 2.324), radicado no Canadá há mais de 40 anos, é um profissional cujas qualificações transcendem limites territoriais, culturais, temporais.
Professor titular da cadeira de Cirurgia da Universidade de Toronto e cirurgião cardíaco no Toronto General Hospital, Dr. Tirone iniciou sua carreira na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde obteve a graduação em dezembro de 1968. Sua história com a Medicina, entretanto, teve início bem antes disso. “Quando eu era menino, meu tio possuía uma farmácia em Ribeirão Claro. Naquele tempo, as coisas eram bem diferentes de agora; o farmacêutico fazia de tudo, e esse tio me ensinou um pouco de química”, lembra o cirurgião, atribuindo à experiência o despertar de sua curiosidade pela Medicina.
Filho de imigrantes (seu pai, Antônio Esperidião David, tinha descendência síria e sua mãe, Carolina David, era descendente de italianos), Dr. Tirone recebeu uma rígida educação em seus primeiros anos de vida. “Meu pai era dono de uma loja de materiais de construção e o sonho dele era que os filhos fossem médicos”, recorda-se. Nascido no dia 20 de novembro de 1944, o cirurgião possui três irmãos e duas irmãs. Dos seis herdeiros da família, entretanto, apenas ele seguiu a profissão almejada pelo patriarca, Sr. Antônio.
Início de carreira: EUA
Logo após se formar, Dr. Tirone realizou sua inscrição do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), em 1º de janeiro de 1969. Durante quase um ano, ele deu plantões no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba. Nessa época, teve a oportunidade de trabalhar e conviver com seu primeiro mentor, o cirurgião Giocondo Villanova Artigas (CRM-PR 495) – “um dos melhores cirurgiões que conheci em toda minha vida” –, que o incentivou a tomar a decisão que mudaria sua vida para sempre: sair do país.
“O professor Artigas me colocou literalmente debaixo de suas asas e disse: Olha, rapaz, se você quiser se diferenciar naquilo que faz, você precisa ir para os Estados Unidos”, relata, acrescentando que seu primeiro emprego em terras estrangeiras foi conquistado com a ajuda do Dr. Artigas. “Naquela época, poucas pessoas saíam do Brasil; a maioria dos médicos optava fazer uma especialidade em São Paulo ou no Rio de Janeiro para depois retornar a Curitiba ou outro local do país em que gostaria de atuar”, explica.
Acompanhando-o na nova jornada estava seu colega de turma, o nefrologista Miguel Carlos Riella (CRM-PR 2.370), natural de Blumenau (SC), mas que concentrou toda a sua carreira médica em Curitiba. O primeiro destino de ambos foi a cidade de Nova York, onde Dr. Tirone fez um ano de internato na State University of New York. Logo depois, decidiu se especializar em Cirurgia Geral na Cleveland Clinic, localizada no estado de Ohio. (Seu colega de internato, Dr. Riella, decidiu pela Nefrologia, e seguiu para a cidade de Seattle, no estado de Washington. Alguns anos depois, ele retornou a Curitiba, onde estabeleceu o Serviço de Nefrologia e Nutrição Parenteral e Enteral no Hospital Evangélico.)
Nesse período, a adaptação às mudanças geográficas e culturais foi um desafio à parte. “Embora nos dias de hoje a sociedade americana seja bastante aberta a estrangeiros, o americano de 50 anos atrás não aceitava as minorias”, ele avalia, ressaltando que os anos iniciais longe do Brasil foram de muito sofrimento, agravado pela falta da família e dos amigos. A busca por mais conhecimento, todavia, o manteve firme em seu objetivo: “Meus professores sempre me disseram que, para praticar a Medicina em um nível alto, era necessário estar lá; acreditava-se que era o melhor lugar para um cirurgião aprender seu ofício.”
Cirurgia cardíaca
Não por acaso, foi na instituição localizada no estado de Ohio que o cirurgião paranaense teve a oportunidade de conviver com novos mentores, que mais uma vez o incentivaram e o inspiraram a ultrapassar barreiras. “Tenho grande consideração pelos Drs. Edwin Beven e Caldwell Esselstyn, que me auxiliaram e tiveram grande influência no cirurgião que me tornei”, ele conta, acrescentando que até hoje mantém contato com o cirurgião chileno Edwin Beven, de 88 anos.
Além das habilidades técnicas, Dr. Tirone explica que seu maior aprendizado nos anos em que esteve na Cleveland Clinic foi desenvolver um raciocínio crítico em busca de novas soluções para problemas antigos. Foram cinco anos de treinamento em Cirurgia Geral, de 1971 a 1975, após os quais ele “descobriu” a especialidade que o tornaria mundialmente famoso: a Cirurgia Cardíaca. “Nunca premeditei o que queria ser no futuro, o que aconteceu ao longo de minha carreira foi uma consequência natural”, acredita. E foi em busca de uma especialização em Cirurgia Cardiovascular e Torácica que ele, novamente, decidiu se mudar. Desta vez, para a cidade de Toronto, no Canadá.
Naquele momento, já estava casado. Jacqueline era enfermeira e trabalhava na Unidade de Tratamento Intensivo da Cirurgia Cardíaca da Cleveland Clinic quando se conheceram. Em 1975, Dr. Tirone iniciou seu treinamento de três anos na Universidade de Toronto. Após esse período, o cirurgião acreditava que havia chegado a hora de retornar ao Brasil. Foram dois meses em São Paulo, sendo treinado pelo professor Euryclides de Jesus Zerbini, um dos pioneiros da cirurgia cardíaca no Brasil e do transplante cardíaco no mundo. “Muitos médicos que praticam a cirurgia cardíaca no Brasil foram treinados por ele”, ressalta.
De volta ao Canadá
A passagem pelo Brasil, todavia, não durou muito tempo. Logo depois da experiência em São Paulo, Dr. Tirone decidiu passar um ano em Paris, estudando válvulas cardíacas, antes de, finalmente, aceitar a proposta de aderir à equipe acadêmica do Toronto Western Hospital, ligado à Universidade de Toronto, em 1978. Ali, construiu carreira, tornando-se chefe da Cirurgia Cardiovascular entre os anos de 1980 e 1989. Entre 1989 e 2011, exerceu a mesma função no Toronto General Hospital. Já são mais de quarenta anos atuando tanto diretamente com pacientes como na produção científica.
Um dos mais antigos hospitais do Canadá, o Toronto General Hospital foi aberto ao público em 1829. Hospital-escola da Universidade de Toronto, em 2019 a instituição foi considerada pela revista norteamericana Newsweek um dos dez melhores hospitais do mundo. O Peter Munk Cardiac Centre, do qual Dr. Tirone faz parte, é um líder global de cirurgia cardíaca e saúde cardiovascular. Foi nesse ambiente que ele pôde conviver com outro mentor fundamental em sua carreira: o cirurgião Wilfred Bigelo, pioneiro da cirurgia cardíaca. “Foi com ele que aprendi a fazer pesquisa, o método científico das coisas”, revela.
Em uma reportagem publicada recentemente pelo jornal canadense “The Star”, o cirurgião paranaense é retratado como peça fundamental do time de cirurgiões do hospital, sendo referido por seus colegas de trabalho como “legend”. A visão deste profissional em relação às suas próprias conquistas, no entanto, é de muito pragmatismo: “Sou um cirurgião acadêmico, minha função é pesquisar, descobrir coisas novas, promover a essência. A vida inteira fiz isso, não sei se é algo com que se nasce, de ser uma pessoa curiosa, ou se é consequência de um ambiente muito estimulante, desafiador, no qual você se sente obrigado a aumentar o seu nível intelectual.”
Para ele, o fato de se estar em um ambiente abundante em descobertas acaba gerando novas descobertas. “Sinceramente não sei se teria desenvolvido todas as coisas que desenvolvi se não estivesse onde estou; dependi muito de uma infraestrutura que me alimentou profissionalmente”, reflete.
‘David Operation’
Aos 74 anos, Dr. Tirone está em plena atividade profissional. Em maio deste ano, esteve em um encontro internacional na cidade italiana de Bari, onde foram abordadas inovações na cirurgia da válvula aorta. Ali, executou uma intervenção cirúrgica demonstrando sua técnica reparativa ao vivo para os participantes. Também em maio, foi um dos palestrantes da 99ª reunião anual da Associação Americana para Cirurgia Torácica – a maior e mais antiga do tipo na América do Norte, realizada na cidade de Toronto, no Canadá. Em agosto, esteve em Curitiba participando de um encontro internacional de Cardiologia.
O que faz cirurgiões do mundo inteiro querer conhecê-lo é ter a oportunidade de assistir ao próprio criador falar sobre ou mesmo demonstrar como se executam suas técnicas, sendo a mais famosa intitulada “David Operation”. A cirurgia, desenvolvida pelo paranaense no final dos anos 80, beneficiou pacientes com alterações nas válvulas cardíacas e dilatação da aorta (como os acometidos pela Síndrome de Marfan), o que fazia com que muitos morressem antes de chegar aos 40 anos.
Por meio da técnica, a anormalidade é tratada mantendo-se a válvula cardíaca, o que prescinde o paciente da necessidade de utilizar terapias de anticoagulação, aumentando sua qualidade de vida. “Celebramos em julho deste ano o aniversário de 30 anos da cirurgia com a presença de minha primeira paciente operada, que tinha 16 anos na época; até hoje, ela está em perfeitas condições de saúde, o que é motivo de muita alegria para todos nós”, ele conta.
Reconhecimento
Com a espantosa marca de mais de 15 mil cirurgias realizadas, Dr. Tirone já recebeu inúmeros prêmios ao longo de sua carreira. No país que escolheu, foi eleito membro da Ordem de Ontário, em 1993, e da Ordem do Canadá, em 1996, a mais alta condecoração civil do sistema de honras daquele país. Entre 2004 e 2005, foi presidente da Associação Americana para Cirurgia Torácica, recebendo, em 2016, o prêmio “Scientific Achievement Award”, mais alta honraria concedida pela instituição a seus cirurgiões associados.
No ano de 2004, foi eleito também “University Professor” pela Universidade de Toronto, a maior homenagem da instituição a seus professores. Em 2007, ele entrou para o rol de grandes cirurgiões da Cleveland Clinic, sendo homenageado com o prêmio “Distinguished Alumnus”. O conjunto de sua obra reúne mais de 400 artigos científicos publicados, dezenas de capítulos em tratados médicos e seis livros de cirurgia. É membro honorário da Associação Europeia Cardiotorácica, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, da Sociedade Italiana de Cirurgia Cardíaca, entre muitas outras.
No Brasil, em 2013, foi empossado membro honorário estrangeiro da Academia Nacional de Medicina (ANM). Na ocasião, foram reconhecidas suas contribuições com o desenvolvimento de técnicas consideradas revolucionárias, a exemplo do uso de neocordas para reparo da válvula mitral e da própria técnica para implante da válvula aorta em pacientes com aneurisma (“David Operation”).
“Nunca pensei que seria famoso. Minha intenção sempre foi somente trabalhar. O que realmente me motiva é saber que as operações que desenvolvi fizeram uma diferença tremenda na vida dos pacientes”, avalia. “A cirurgia que leva meu nome, se bem feita, transformará a vida do paciente por mais 20, 30 anos”, orgulha-se.
Família e relação com o Brasil
Após tantos anos longe do Brasil, Dr. Tirone considera o Canadá seu lar. Casado com a americana Jacqueline, eles têm três filhas canadenses: Adriane, a mais velha, trabalha com pesquisas farmacêuticas; Carolyn, a do meio, é enfermeira e também trabalha com pesquisa; e Kristen, a mais nova, é empresária e mãe dos dois netinhos do casal: Leo e Owen, de quatro e dois anos. “São a nossa alegria; minha esposa e eu nos sentimos mais jovens após a chegada deles”, conta.
Até alguns anos atrás, Dr. Tirone visitava o Brasil de
três a quatro vezes ao ano, para ver os pais. Suas filhas, quando pequenas, costumavam passar as férias na casa dos avós brasileiros.
Nos últimos tempos, suas vindas ao país de origem têm sido mais esporádicas, principalmente para participar de eventos da
área médica. “Quando vou, aproveito para passar alguns dias visitando meus familiares”, explica. Dois irmãos e uma irmã do
cirurgião residem em Curitiba, uma mora em São Paulo e o terceiro irmão ainda vive em Ribeirão Claro, onde toca a loja de
materiais de construção da família.
Fio condutor
Ousando-se fazer um balanço de uma extensa e exitosa carreira na cirurgia cardíaca, é possível enxergar um fio condutor que impulsionou esse médico paranaense a buscar voos cada vez mais altos. Começando pelo pai, o Sr. Antônio Esperidião David – “a pessoa que mais me estimulou a buscar ser o melhor, não aceitava a mediocridade” –, passando por seus mentores brasileiros e, depois, estrangeiros, essas pessoas foram peças fundamentais para formar o cirurgião que o Dr. Tirone se tornou.
A despeito dos muitos anos de trabalho incessante, o paranaense não pensa em se aposentar tão cedo. “Não sei se é genética ou o poder da mente, mas não me comporto como uma pessoa de 74 anos; faço parte de um grupo de oito cirurgiões, o mais jovem tem 38 anos, e eles não conseguem trabalhar tanto como eu”, afirma, sem meias palavras. Para esse cirurgião, a dedicação à Medicina já não passa mais pelo dever ou necessidade, sendo, acima de tudo, um prazer. “Não preciso mais trabalhar, financeiramente estou muito bem, graças principalmente às patentes das minhas invenções”, explica.
“Levanto todos os dias com entusiasmo, pensando em trabalhar, dar aula, pesquisar, ver meus pacientes. Faço isso há 47 anos e a paixão ainda não acabou”, relata, sobre sua rotina há quase cinco décadas. E finaliza: “Acho que nunca vai acabar.”
Ribeirão Claro
Com uma população de aproximadamente dez mil habitantes, a cidade de Ribeirão Claro está localizada no chamado Norte Pioneiro, fazendo divisa com a cidade de Chavantes, no estado de São Paulo (uma ponte pênsil de 160 metros de comprimento, sobre o rio Paranapanema, separa os dois municípios).
Conhecida por suas belezas naturais, como o Morro do Gavião, a cidade atrai o turismo ecológico. Cidade de origem do músico Luiz Carlos Paraná, compositor da música “Maria, Carnaval e Cia”, gravada pelo cantor Roberto Carlos na década de 1960.