30/06/2014

Cientistas travam luta silenciosa contra superbactérias, ameaça para a saúde mundial

Nos últimos dez dias três grandes estudos foram divulgados com o objetivo de lutar contra os micro-organismos

Pesquisadores em diversas partes do mundo estão numa corrida contra a evolução. Apenas nos últimos dez dias, três grandes estudos foram divulgados com um objetivo comum: buscar armas para lutar contra o rápido avanço das superbactérias, micro-organismos que se tornaram resistentes a todos ou à maior parte dos antibióticos disponíveis. Esses patógenos já chegaram, em intensidades diferentes, a todos os países. Segundo o relatório Organização Mundial de Saúde (OMS), representam uma ameaça às conquistas da medicina moderna, em que infecções e lesões hoje sem gravidade poderão voltar a trazer risco de morte.

A descoberta da penicilina, em 1928, por Alexander Fleming, foi uma revolução no século XX ao controlar infecções bacterianas até então fatais. Por décadas, os antibióticos estiveram um passo à frente dos constantes inimigos em mutação. Agora, estamos perdendo posição nessa corrida, depois de anos de uso abusivo e, às vezes, inadequado desses medicamentos em humanos, animais e agricultura, além da falta do desenvolvimento de novas grandes classes de drogas desde a década de 1980.

— De fato houve uma seca de antibióticos — comenta o infectologista Carlos Kiffer, pesquisador do Laboratório Especial de Microbiologia Clínica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). — O retorno de investimento da indústria farmacêutica é maior no caso de doenças crônicas, em que as pessoas se tratam por mais tempo, do que as agudas. Além disso, o fluxo de novas drogas é demorado. Então, quando são lançadas, as bactérias já estão adquirindo resistência. A quem vai interessar? Por isso é tão importante o incentivo governamental — diz.

As consequências da falta de interesse das indústrias já são vistas na prática. Nos Estados Unidos, dois milhões de americanos adoecem anualmente por causa das bactérias resistentes aos antibióticos, e pelo menos 23 mil morrem dessas infecções, segundo dados do governo divulgados em maio. Além disso, mais de 450 mil casos de tuberculose em 2012 foram causados por bactérias super-resistentes no mundo. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) diz não ter dados de óbitos causados por esses organismos, mas tem um boletim que registrou quase dez mil casos de bactérias resistentes a remédios nas UTIs do país em 2012.

A situação alarmou a OMS, que convocou os governos a agir. E investimentos em pesquisa voltaram a ocorrer em alguns países, como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá.

POLIMIXINA, FUNGOS E NOVOS ALVOS

Três estudos com abordagens bastante diferentes foram divulgados nos últimos dias. Uma das possibilidades de curto prazo é a de pesquisadores da Universidade de Buffalo (EUA), com recursos de US$ 4,4 milhões do governo americano. A ideia é usar um antibiótico desenvolvido há mais de 50 anos, mas que tinha sido deixado de lado por ser tóxico para os rins e o sistema nervoso: a polimixina. Para esses pesquisadores, é possível otimizar a dosagem para torná-la uma munição contra algumas superbactérias (Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa e Klebsiella pneumoniae), ao menos enquanto não surgem drogas mais poderosas.

Outra perspectiva está sendo desenvolvida pela Universidade McMaster, do Canadá. Lá, descobriu-se uma molécula derivada de um fungo encontrado no país, conhecida como AMA, capaz de desativar a enzima NDM-1 (ou Nova Délhi Metallo-beta-Lactamase-1), a responsável por tornar as bactérias Klebsiella pneumoniae e Escherichia coli resistentes a uma classe de antibióticos (betalactâmico). Essa opção, no entanto, ainda estaria longe de virar realidade.

— A evolução da resistência está certamente ultrapassando a descoberta de novas drogas agora. Para o nosso inibidor de NDM-1, estamos a anos de distância da clínica. Ainda são necessários muitos estudos de toxicidade e farmacologia para mostrar que ele é seguro — explicou ao GLOBO o autor principal do estudo Gerry Wright, diretor do Instituto de Pesquisa sobre Doenças Infecciosas da universidade.

A terceira possibilidade, considerada a mais promissora, muda o alvo contra a bactéria. Pesquisadores da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, sabem que uma das principais famílias de bactérias, a das gram-negativas (por exemplo, a Escherichia coli), tem um membrana externa de gordura que as protege de antibióticos. A inovação foi encontrar um caminho por meio do qual se possa furar essa barreira protetora.

— Esse mecanismo é interessante porque os outros usados pelos antibióticos já estão saturados — comemora a pesquisadora do Laboratório Pesquisa em Infecção Hospitalar da Fiocruz, Ana Paula Assef. — Mesmo que surgissem novos medicamentos, eles seriam rapidamente superados pelas bactérias resistentes, pois a lógica é mesma. Por isso é preciso mudar o alvo, como este estudo está fazendo.

Ana Paula diz, no entanto, que as propostas ainda são incipientes para se chegar às novas drogas. E, enquanto isso, no laboratório, ela recebe de todo o país amostras bacterianas para avaliar seus mecanismos de resistência. A situação brasileira, ela lamenta, não é nada animadora:

— Está bem crítico no Brasil. Nossa resistência é bem alta, e o problema está bem disseminado.

As superbactérias ainda estão restritas aos hospitais, o que não significa que todos os indivíduos que entrarem nesse ambiente estarão sob risco.

— O problema global de resistência é grande, mas os problemas pontuais variam de situação para situação — pondera Kiffer. — Todo hospital tem algum problema de bactéria resistente, mas nem todos têm o mesmo nível ou a mesma característica de resistência.

PREOCUPAÇÃO PARA ALÉM DOS HOSPITAIS

A preocupação de cientistas é que essas superbactérias cheguem a contaminar indivíduos fora do ambiente hospitalar. Por enquanto não houve registros disso, mas, segundo Ana, já foram encontradas amostras da bactéria KPC (Klebsiella Pneumoniae) no Rio Tietê, em São Paulo, e no Aterro do Flamengo, no Rio.

Em geral, essas bactérias têm sintomas como os de infecções normais, como febre e dores no corpo. Há organismos que podem provocar pneumonia, infecções sanguíneas e no trato urinário. A diferença delas para outras enfermidades é que simplesmente não respondem aos tratamentos.

Atualmente, as formas de controle do problema recaem sobre procedimentos para tratar mais rápida e eficientemente os pacientes infectados, no caso dos hospitais. E, fora deles, principalmente com a restrição às vendas de antibióticos. No caso da população, evitar usar o remédio sem necessidade, como em casos de doenças virais, ou abandonar o tratamento antes do fim da prescrição médica.

Fonte: O Globo

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