06/04/2010
Carta de indignação de um médico
Artigo escrito pela médica paranaense Camila Castilho Machado Rosa.
Ontem quando estava saindo do trabalho passei por uma situação difícil.
Sou médica em uma unidade de emergência da prefeitura.
Estávamos com uma paciente que precisava de uma endoscopia. Não disponho de tal exame na unidade, mas a paciente seria
encaminhada a realizá-lo em outro hospital (dispunhamos do agendamento para isso). Por várias vezes a família da paciente
me solicitou que eu fizesse um encaminhamento para que o exame fosse realizado no setor privado de saúde. Não posso fazer
isso. Não posso tirar uma paciente do sistema público e encaminhá-la ao particular se tenho todo o atendimento disponível
na rede SUS. Não somos autorizados a tais encaminhamentos porque o serviço público se torna responsável por qualquer coisa
que aconteça à paciente quando a mesma sai da unidade, ainda que não tenha relação com a doença de origem (no caso em questão,
se a paciente fosse atropelada na rua eu seria responsável legalmente por tê-la permitido sair da unidade). Expliquei por
várias vezes a família que poderiam levar a paciente a qualquer momento caso desejassem, mas por decisão própria, que não
encaminharia com o meu carimbo. Mas eles se recusaram a entender e iniciaram uma grande discussão que acabou com a filha da
paciente me agredindo fisicamente, além de me ameaçar dizendo que morava na favela, que gravou o meu rosto e que me esperaria
na saída.
Seria menos triste se isso fosse uma situação isolada, mas não é. Escutamos recentemente sobre uma professora agredida
por uma criança de doze anos, professora essa que ficou com tanto medo que negou ser vítima de qualquer abuso. Há duas semanas
no mesmo local em que trabalho, o filho de uma paciente apontou uma arma para enfermeira de plantão.
Todos os dias, nos setores da saúde, educação e polícia, existem abusos morais e físicos por parte dos usuários. Nas últimas
décadas no Brasil criou-se uma política de proteção ao usuário dos serviços públicos, com a filosofia de que sempre estão
corretos até que se prove o contrário. São o curral eleitoral moderno. O voto de cabresto camuflado. Não recebem nenhum tipo
de punição pelas autoridades, ainda que ameacem e agridam profissionais. O resultado é que se perdeu o controle e temos profissionais
com medo de ir ao trabalho, sem citar os que de fato chegam a machucar-se ou pior, perder suas vidas.
O que esperaremos para que haja providências? A falência total dos serviços públicos? O abandono das escolas e dos serviços
de saúde pelos profissionais?
Parafraseando Che Guevara ." Hay que endurecer-se pero sin perder la ternura jamas!". Para que se entenda melhor, podemos
inverter a frase, ou seja, não podemos perder a ternura, mas há momentos em que precisamos endurecer.
Por outro lado, entendendo a enorme disparidade entre mim e a mulher que me agrediu pude olhar para aquela pessoa com
outros olhos. Enquanto eu penso nos meus sonhos para o futuro e nos meus estudos após a graduação, ela pena na sobrevivência.
Não acho que a atitude em questão tenha sido fruto da discussão... acho que foi só conseqüência de uma situação social
quase que desumana. É justo alguém ter que literalmente brigar com as próprias mãos por aquilo que considera direito a saúde?
Estamos vivendo uma desigualdade social tão gritante que alguém ameaça um profissional de saúde a chamar seus companheiros
de favela e acha isso bom? Correto? Resolutivo? Tal apelo deveria gerar vergonha em um cidadão comum e não orgulho... ou apelar
a um criminoso mais forte é razão de se orgulhar? Só se apela ao crime quando não se encontra socorro em outro lugar. Só se
apela à força quando todo a nossa possibilidade de defesa está esgotada, quando não se tem o básico para um vida com dignidade...
quando não se luta por sonhos ou idéias, mas sim por comida e um espaço para viver.
O que ela não conseguiu entender é que eu não sou a culpada da agressão da qual ela é vítima. E que comportamentos como
o dela estão afastando os profissionais da saúde, educação e da própria polícia das pessoas que mais precisam deles. Para
todos os colegas com os quais conversei sobre a situação, a melhor atitude seria simplesmente abandonar essa população...
deixar que briguem sozinhos pelos próprios direitos... e essa postura médica gera em mim uma grande tristeza. Tristeza por
reconhecer que não importe onde um cidadão more, ou qual seja a sua renda, ele tem o mesmo direito a saúde que qualquer outro.
E tristeza por saber que isso de fato não acontece. As queixas da população não são sem fundamento. Faltam profissionais,
faltam equipamentos, faltam remédios, faltam vagas em hospitais. Ninguém nunca negou isso. Mas o que pode um médico fazer
em relação a isso? O que é necessário é uma nova política governamental, política essa que a população mais sofrida não sabe
exigir. É claro que para o nosso presidente é muito mais fácil colocar a culpa no médico... isso faz com que ele não precise
realizar mudanças (para quem não sabe o nosso presidente Lula declarou publicamente que considera o médico o culpado pela
precariedade da saúde no Brasil). A atitude agressiva em relação a nós, profissionais, é talvez um grito de uma sociedade
oprimida, mas é um grito contra a pessoa errada, causando afastamento entre o cliente interessado em atendimento e o médico.
Como pode isso gerar algo bom?
Como diria Josué de Castro, "Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come".