Durante a terceira edição do programa de Formação Continuada em Bioética do CRM em parceria com a PUC-PR, realizado em 27
de maio, o médico pediatra e bioeticista do Hospital das Clínicas de São Paulo, Gabriel Oselka, falou sobre dilemas médicos
relacionados à terminalidade da vida. Como membro da Câmara Técnica do CFM sobre Terminalidade da Vida, ele levantou alguns
questionamentos acerca do tema e informou aos mais de 70 participantes sobre a Minuta de Resolução que estão produzindo para
legalizar o assunto.
O Conselho Federal de Medicina já enviou a proposta de resolução para todos os Conselho de Medicina para que eles discutam
e apontem sugestões acerca do que deve ser permitido ao médico no que diz respeito a limitar ou suspender procedimentos e
tratamentos de prolongamento da vida do doente em fase terminal. Abaixo segue ofício enviado aos CRMs, para ver a minuta
clique aqui .
Ofício CFM enviado aos Conselhos de Medicina
A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação médico-enfermo. A Ética Médica tradicional
concebida no modelo hipocrático tem um forte acento paternalista. Ao enfermo cabe simplesmente obediência às decisões médicas,
tal qual uma criança deve cumprir sem questionar as ordens paternas. Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato
médico era julgado levando-se em conta apenas a moralidade do agente desconsiderando-se os valores e crenças dos enfermos.
Somente a partir da década de 1960 os códigos de ética profissional passaram a reconhecer o doente como agente autônomo.
À mesma época, a medicina passou a incorporar com muita rapidez um impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs) e novas metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis vitais. ofereceram aos profissionais a
possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século XX o tempo estimado para o desenlace após a instalação de
enfermidade grave era de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico hoje disponível que
não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer sem a anuência do médico.
Bemard Lown em seu livro "A arte perdida de curar" afirma: "As escolas de medicina e o estágio nos hospitais os preparam
(os futuros médicos) para tornarem--se oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se
ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar com a morte. A realidade mais fundamental é que
houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do morrer."
Cresceu enormemente o poder de intervenção do médico sem que ocorresse simultaneamente uma reflexão sobre o impacto dessa
nova realidade na qualidade de vida dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefícios auferidos com as novas metodologias
diagnósticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas salvas em situações críticas como, por exemplo, os enfermos recuperados
após infarto agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves distúrbios hemodinâmicos que foram resgatados plenamente saudáveis
através de engenhosos procedimentos terapêuticos.
Ocorre que nossas UTIs passaram a receber, também, enfermos portadores de doenças crônico-degenerativas incuráveis com
intercorrências clínicas as mais diversas e que são contemplados com os mesmos cuidados oferecidos aos agudamente enfermos.
Se para os últimos, com freqüência, alcança-se plena recuperação, para os crônicos pouco se oferece além de um sobreviver
precário e, as vezes, não mais que vegetativo. Somos expostos à dúvida sobre o real significado da vida e da morte. Até quando
avançar nos procedimentos de suporte vital? Em que momento parar e, sobretudo, guiados por que modelos de moral idade?
Aprendemos muito sobre tecnologia de ponta e pouco sobre o significado ético da vida e da morte. Um trabalho publicado
em 1995, no Archives of Internal Medicine, mostrou que apenas cinco de cento e vinte e seis escolas de medicina norte-americanas
ofereciam ensinamentos sobre a terminal idade humana. Apenas vinte e seis dos sete mil e quarenta e oito programas de residência
médica tratavam do tema em reuniões científicas.
Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo com doença incurável
em fase terminal, impondo--lhe uma longa e sofrida agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e prolongado sofrimento
para o enfermo e sua família. O estudo SUPPORT publicado no ano 1999 colheu informações de familiares e doentes gravemente
enfermos e concluiu que 55% dos mesmos estiveram conscientes nos três dias que antecederam a morte, 40% sofreram dores insuportáveis,
80% fadiga extrema e 63% tiveram extrema dificuldade para tolerar o sofrimento físico e emocional que experimentavam.
As evidências parecem demonstrar que esquecemos o ensinamento clássico que reconhece como função do médico "curar às vezes,
aliviar muito freqüentemente e confortar sempre. " Deixamos de cuidar da pessoa doente e nos empenhamos em tratar a doença
da pessoa desconhecendo que nossa missão primacial deve ser a busca do bem-estar físico e emocional do enfermo, já que todo
ser humano sempre será uma complexa realidade biopsicosocial e espiritual.
A obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo nos conduz à obstinação diagnóstica e terapêutica. Alguns alegando
ser a vida um bem sagrado por nada se afastam da determinação de tudo fazer enquanto restar um débil sopro de vida. Um documento
da Igreja Católica de maio de 1980 assim considera a questão: "É lícito renunciar a certas intervenções médicas inadequadas
a situações reais do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas
para ele e sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável pode-se em consciência renunciar
a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida..."
Em maio de 1991 o Jornal Washington Post publicou um artigo assinado pelo médico John H. Flashen com o título: "Escolhendo
Morte ou mamba na UTI" que bem define a situação de sofrimento que muitos doentes experimentam quando internados em nossas
modernas UTls. Relata o articulista, em história ficcional, a experiência que viveram três missionários religiosos quando
aprisionados por uma tribo de canibais. Como forma de execução, o chefe tribal oferecera-lhes duas opções: morte ou mamba.
Dois deles, sem saber o significado de mamba, a escolheram, na suposição que certamente seria melhor que morte, que bem conheciam.
Souberam, então, que mamba era uma cobra venenosa cuja picada impunha enorme e insuportável sofrimento antes de culminar,
após algumas horas, em morte. Viveram, assim, uma longa agonia antes do desenlace final. Após presenciar o insólito sofrimento
dos companheiros, o terceiro missionário rogou ao chefe indígena que lhe concedesse a morte. Recebeu como resposta que a teria
sem dúvida, porém, precedida de "um pouquinho de mamba". A questão apresentada por Flashen aos médicos é sobre a quantidade
da mamba imposta cotidianamente a inúmeros enfermos internados em UTI.
Lemos em Eclesiastes, redigido provavelmente no século III a.C.: "Tudo tem seu tempo, o momento oportuno para todo propósito
debaixo do sol. Tempo de nascer, tempo de morrer" (Ecl 3, 1 e 2). Inevitavelmente cada vida humana chega ao seu final. Assegurar
que esta passagem ocorra de forma digna, com cuidados e buscando-se o menor sofrimento possível é missão daqueles que assistem
aos enfermos portadores de doenças em fase terminal. Um grave dilema ético que se apresenta hoje para os profissionais de
saúde se refere a quando não utilizar toda tecnologia disponível. Jean Robert Debray em seu livro, L`acharnement thérapeutique"
assim conceitua obstinação terapêutica: "Comportamento médico que consiste em utilizar procedimentos terapêuticos cujos efeitos
são mais nocivos do que o próprio mal a ser curado. Inúteis, pois a cura é impossível e os benefícios esperados são menores
que os inconvenientes provocado". Essa batalha fútil travada em nome do caráter sagrado da vida parece negar a própria vida
humana naquilo que ela tem mais essencial que é a dignidade.
Outro sim, esta exposição sobre a assistência médica a enfermos portadores de doenças terminais, propõe um desafio, especialmente
dirigido aos hospitais universitários. Por que não oferecer, além de unidades de alta tecnologia médica, um serviço de cuidados
paliativos com assistência multidisciplinar? Profissionais de diferentes áreas do saber acadêmico integrados para proporcionar
um atendimento ao enfermo e sua família nesse período crucial da vida.
Cicely Saunders, médica inglesa que criou em 1967 o primeiro serviço com as características acima apontadas e o denominou
"hospice", teve seu exemplo seguido em vários países, lamentavelmente não no Brasil. Hoje, na Inglaterra, existem mais de
dois mil e quinhentos leitos destinados ao atendimento de doentes terminais. A revista Newsweek de março de 1988 estimou que
35% dos cento e quarenta mil enfermos ingleses portadores de câncer são atendidos em hospices.
No Brasil, há muito que fazer, iniciando pelos aparelhos formadores que moldam profissionais com esmerada preparação técnica
e nenhuma ênfase humanística. Precisamos atentar para as observações de Bernard Lown, que exorta as faculdades de medicina
a formarem profissionais mais sensíveis ao sofrimento e menos técnicos, menos "oficiais maiores da ciência e gerentes de biotecnologias
complexas", e mais profissionais com competência humanitária. Afinal, se estamos ao lado do ser humano ao nascer e no transcurso
de sua vida, precisamos acompanhá-lo solidariamente no morrer, mas que a derradeira passagem respeite sua dignidade.
O médico é aquele que detém a maior responsabilidade da "cura" e, portanto, o que tem o maior sentimento de fracasso perante
a morte do enfermo sob os seus cuidados. Entretanto, nós, médicos, devemos ter em mente que o entusiasmo por uma possibilidade
técnica não nos pode impedir de aceitar a morte de um doente e devemos ter a maturidade suficiente para pesar qual modal idade
de tratamento será a mais adequada. Deveremos considerar a eficácia do tratamento pretendido, seus riscos em potencial e as
preferências do enfermo e/ou seu representante legal.
Diante dessas afirmações, torna-se importante que a sociedade tome conhecimento que certas decisões terapêuticas poderão
somente prolongar o sofrimento do ser humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares,
que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana
e sobre o processo do morrer.
Diante do relatado o Conselho Federal de Medicina com base nas discussões realizadas pela Câmara Técnica sobre a Terminalidade
da Vida sugere que:
1. Sejam incentivados debates sobre a finitude do ser humano com a sociedade. 2. Sejam realizados debates com os profissionais
da área da saúde sobre o tema Morte e Morrer.
3. Seja ensinado aos estudantes e aos médicos, tanto na graduação quanto na pós-graduação e nos cursos de aperfeiçoamento
e de atualização: as limitações dos sistemas prognósticos, como utilizá-las, como encaminhar as decisões sobre a mudança da
modalidade de tratamento curativo para cuidados paliativos, como reconhecer e tratar a dor, como reconhecer e tratar os outros
sintomas que causam desconforto e sofrimento aos enfermos, o respeito às preferências individuais e às diferenças culturais
e religiosas dos enfermos e seus familiares e o estímulo à participação dos familiares nas decisões sobre a terminalidade
da vida.