01/09/2014

Bastidores da precária situação da saúde pública no Rio são revelados em livro

Da falta de infraestrutura à violência diária, cirurgião conta sobre o período que passou em hospitais públicos cariocas

clique para ampliar>clique para ampliarFront de batalha. Cirurgião torácico, Marcio Maranhão, no Hospital Municipal Souza Aguiar, onde fez a residência em Cirurgia Geral, na década de 1990, quando ainda carregava o sentimento de romantismo pela profissão. (Foto: Guito Moreto)

“A realidade é paralisante”, diz o cirurgião torácico Marcio Maranhão sobre a precária situação do setor público de saúde no Rio de Janeiro. Mas ficar parado foi o contrário do que fez o médico, que lança no dia 17 de setembro o livro “Sob pressão - a rotina de guerra de um médico brasileiro” (Ed. Foz).

Na juventude, dedicar-se ao sistema público de saúde era um desejo do médico Marcio Maranhão. Formado pela Uerj em 1994, ele dizia querer retribuir ao Estado a educação que recebera. E era onde poderia exercer a “medicina plena”, social, bem diferente daquela do consultório privado. De início, sentia-se poderoso, eficiente, idealista. Mas esse romantismo foi se perdendo à medida que foram se acumulando experiências traumáticas em hospitais públicos cariocas como Souza Aguiar (municipal), Saracuruna e Adão Pereira Nunes (estaduais).

A falta de infraestrutura básica e a violência diária, entre outros fatores, foram minando as intenções do profissional, que chegou ao seu limite em 2009, quando decidiu abandonar “o cenário de ruínas”. Hoje, seu único braço no serviço público é como chefe do Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital da Força Aérea do Galeão, onde diz ter condições de trabalho.

Seu livro está sendo considerado a “Tropa de elite da saúde”. Concorda com o rótulo?

O termo é pesado, mas o conteúdo de indignação talvez se compare ao do “Tropa de Elite”. Eu enxergava o concurso público como uma dedicação necessária ao Estado que me formou, além de ser onde o médico exerce uma medicina plena, não aquela medicina de consultório de Zona Sul, de Barra da Tijuca. Não fui trabalhar no sistema público por conta do salário, era porque eu acreditava no trabalho.

Pelo que conta, foi apesar dele...

Foi apesar dele. Em 2000, eu tinha um salário de R$ 1.249 por 20 horas semanais e, em nove anos, ele aumentou R$ 99. Consegui interferir positivamente em vários pacientes, mas era uma luta muito grande fazer uma medicina de mínima qualidade. Eu não desisti do sistema, foi o sistema que desistiu de mim, me expulsou, na verdade.

O livro mostra a revolução de emoções que o médico vive: desde o romantismo do início até o que chamou de “amarelamento”, comparando à cor do seu jaleco. Por isso diz que se sentiu expulso?

Fiz medicina imbuído romantismo da profissão. Entendia a medicina como um gesto de solidariedade. Tratar alguém é viciante, dá uma sensação de poder. Mas este sentimento vai se modificando, o sistema te empurra uma nova roupagem.

Há histórias que são muito duras e chocantes. Era essa sua intenção?

A intenção era ter uma visão de um soldado que foi ao front de batalha e voltou para contar. Trago histórias minhas, mas não são únicas. Tenho vários colegas com depoimentos tão escabrosos quanto. Na verdade, não era para chocar, era para mostrar a realidade.

A realidade da saúde é chocante?

A realidade é chocante. Muitas vezes, ela é paralisante. Tenho colegas médicos que podem estar respaldados pelo código de ética médico, dizer que não vão fazer o procedimento porque não têm condições mínimas. Eles têm razão, mas certamente aquele paciente vai ser prejudicado. Então eu procurei ser o mais comprometido possível com o doente. E cheguei no meu limite.

A experiência de operar uma jovem na enfermaria é um exemplo? Como foi?

Exato. A menina era muito jovem e foi esfaqueada pelo namorado durante uma briga. Estava entrando num processo de infecção generalizada. Caí de paraquedas e vi uma situação da qual não poderia me eximir. Ia levá-la para o centro cirúrgico, mas não tinha vaga, sequer uma previsão. Decidi drenar o tórax (retirar o sangue e outros fluidos) na enfermaria. No início havia plateia, que foi sumindo à medida que as cenas foram ficando mais fortes. No dia seguinte, a menina estava felizmente sem febre, caminhando.

Mas o senhor poderia ser responsabilizado por imprudência?

Sim, assumi totalmente o risco. Foi uma armadilha que o sistema me pregou. O que eu ia fazer? Ir embora e escrever no prontuário que não havia condições de operá-la? Corria o risco de ser imprudente, mas tinha muito mais medo de me tacharem de negligente. Nós acabamos nos expondo, e isto também é desgastante.

Sua experiência no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi muito diferente daquela dentro do hospital? Alguma história marcante?

Sou cirurgião torácico com experiência em terapia intensiva. No Samu, via uma realidade que não imaginava existir tão perto de nós, que é estar numa favela violenta sendo o único braço do poder público a ter entrada. Trago histórias significativas, e uma delas foi a peregrinação para conseguir um leito de terapia intensiva. Foram 36 horas de plantão, porque eu não tinha como largar o paciente no meio. Cheguei a brigar com colegas quando chegava no hospital pedindo vaga. Eu sei que representava um problema para eles, e a capacidade deles de resolvê-los estava esgotada. Só consegui interná-lo por um favor pessoal. No final do dia, estávamos eu, minha equipe e as filhas do paciente comemorando com cachorro quente.

A violência ronda o trabalho do médico o tempo todo. O que sentiu, por exemplo, quando teve que resgatar um traficante morto para evitar um conflito numa favela?

No hospital, nós recebemos o resultado da violência. Aquele caso foi extremo. Eu senti muito medo. Havia traficantes armados na favela, e um deles já estava morto. Agi no instinto porque estava sendo pressionado para dar atendimento. Botamos o corpo na ambulância e encenamos a assistência que faríamos se ele estivesse vivo. Acho que o teatro foi o que nos garantiu a saída com a ambulância da comunidade.

Hoje fala-se mais das emergências e menos da situação dos idosos internados que são totalmente esquecidos. Na sua opinião, é um lado tão duro quanto o do serviço de urgência?

Isso é muito duro, mas comum. Em macas duras, os idosos internados vão literalmente apodrecendo, abrindo feridas por ficarem imóveis tanto tempo. Eles nunca têm prioridade porque não são baleados. Eles têm diabetes, hipertensão, câncer. Morrem sem serem percebidos. Não deveriam estar ali, mas não têm onde serem acolhidos.

Embora haja muitos comprometidos, há também os médicos que vão se tornando alheios ao sofrimento até chegarem à negligência. Isso tem diminuído a confiança na classe?

Fala-se de inovação, mas talvez a verdadeira inovação seja voltar aos conceitos do passado da medicina familiar. O negócio da saúde se tornou um convite para pedir exames, fragmentar a assistência. Não tenho intenção de justificar a classe médica pelo sistema precário, minha intenção é defender a saúde. Caminhamos para uma ruptura da confiança da sociedade no médico, porque ele é a face da inoperância do Estado. Isso é preocupante. Eu cito histórias revoltantes de negligência médica, mas tenho colegas que tentam ainda fazer uma medicina de qualidade. É preciso separar e valorizar isso.

Um trecho do livro diz que “está tudo errado”. A começar pelo quê?

Nunca me propus a dar uma solução simples, mas dentre os maiores problemas está o subfinanciamento, isso é uma unanimidade. Além da má gestão e da corrupção endêmica, que permeia todos os setores, desde a compra de insumos à contratação.

A impressão do livro é que a situação da saúde só fez piorar. Foi isso?

Piorou muito. Há poucas ilhas de excelência que resistem. Eu, por exemplo, acompanhei o fim do Instituto de Tisiologia e Pneumologia, o primo pobre da UFRJ, que atendia casos complexos de tuberculose, e hoje estes pacientes estão órfãos de atendimento. O instituto salvava muitas vidas, mas fechou porque a tuberculose é uma doença da pobreza.

Fonte: O Globo

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