A emissão de atestados de óbito é
de extrema relevância no contexto da saúde pública e da administração funerária,
especialmente em grandes centros urbanos. Observa-se, nesse cenário, certo descompasso entre a regra para a emissão
desses documentos e a realidade vivenciada, pois, enquanto as normas estabelecem procedimentos claros e rigorosos, as dinâmicas
sociais e a complexidade das interações humanas em ambientes urbanos criam desafios que dificultam o cumprimento
dessas diretrizes. Nesse contexto, é crucial buscar soluções que alinhem as normas à realidade
prática das grandes cidades, especialmente no que toca aos médicos em relação à legislação
pertinente e à responsabilidade legal.
Aliado
a isso, o desconhecimento por parte médicos em relação às normas legais e a dificuldade de interpretá-las
contribui para esse descompasso entre a teoria e a prática no ambiente urbano. Muitos profissionais de saúde,
apesar da respeitável expertise clínica, não recebem formação adequada sobre a legislação
vigente, o que pode levar a erros ou atrasos na emissão de documentos importantes. Essa lacuna de conhecimento e a
complexidade das normas geram insegurança e incertezas que afetam tanto os familiares enlutados quanto a gestão
pública de dados sobre mortalidade. É imprescindível promover uma capacitação adequada
para que os médicos estejam cientes de suas responsabilidades legais e possam atuar de maneira eficiente em momentos
delicados.
A preocupação dos
médicos com a emissão de atestados de óbito ao longo do tempo tem se intensificado, refletindo a crescente
exigência da profissão nos níveis ético, criminal e civil. Essa responsabilidade, embora fundamental
para a precisão dos registros de óbito e a manutenção das estatísticas de saúde
pública, pode gerar estresse e insegurança.
Com o aumento do conhecimento clínico e a variação nas circunstâncias dos falecimentos,
muitos profissionais sentem-se pressionados quando não conseguem garantir que todos os detalhes estejam corretos.
Com o crescimento populacional e a urbanização, especialmente
em Curitiba, tornou-se evidente a necessidade de uma abordagem mais integrada para lidar com a complexidade dos registros
de óbito. Originalmente, o Instituto Médico-Legal (IML) tem a função de realizar autópsias
e perícias em casos de morte violenta ou suspeita, enquanto o Serviço de Verificação de Óbito
(SVO) é o responsável por verificar e atestar mortes naturais sem assistência médica. Ambos tradicionalmente
trabalharam no mesmo prédio por décadas, o que contribui para a confusão entre suas atribuições.
Sobre a importância dos documentos médicos,
com a morte de uma pessoa, surge uma série de efeitos jurídicos que impactam tanto o patrimônio do falecido
quanto os direitos e deveres das pessoas envolvidas. Entre os principais efeitos civis, destacam-se extinção
dos direitos e deveres pessoais, sucessão patrimonial e obrigações fiscais, entre outras. Esses efeitos
jurídicos são sobremaneira complexos e exigem cuidados legais para assegurar os interesses dos herdeiros.
A declaração de óbito em si é o documento
preenchido pelo médico que supre essas finalidades essenciais no contexto jurídico e administrativo. As principais
funções desse documento são registro legal da morte que será formalizada com a emissão
de certidão de óbito pelo cartório (a partir da declaração, é possível obter
o certidão de óbito, que é utilizado para diversos fins legais.) Em suma, a declaração
de óbito é um documento médico fundamental que garante a legalidade e a organização em
relação à morte de um indivíduo, impactando diretamente as questões patrimoniais, legais
e sociais.
Nesse sentido, o médico tem
responsabilidade ética e jurídica pelo preenchimento e pela assinatura da declaração de óbito,
assim como pelas informações registradas em todos os campos desse documento, devendo, portanto, revisar o documento
antes de assiná-lo.
Um cuidado importante
é não assinar uma declaração de óbito em branco, porque a assinatura de um médico
em um documento sem as informações preenchidas expõe o médico a acusações jurídicas
e éticas, pelo potencial de fraudes relacionadas ao preenchimento das informações de maneira fraudulenta.
Logo, é fundamental que o médico
preencha a declaração de óbito de forma completa e precisa antes de assinar, garantindo que todos os
dados sejam verificados e que o documento cumpra sua função legal e administrativa de maneira adequada, devendo,
pessoalmente, examinar o corpo, constatar a morte e verificar a identidade do falecido.
Para ajudar o sistema de gestão de saúde, o médico não
deve utilizar termos vagos (garbage codes) no registro da causa da morte, tais como parada cardíaca, parada
cardiorrespiratória ou falência de múltiplos órgãos. O aspecto de informação
epidemiológica, sempre que possível, deve ser respeitado.
Na mesma linha, o médico não deve cobrar pela emissão da declaração
de óbito, embora o ato médico de examinar e constatar o óbito possa ser cobrado, desde que se trate de
paciente particular a quem não vinha prestando assistência.
Ainda sobre a declaração de óbito, quem deve assiná-la, quando há
assistência médica, é o médico que estava prestando tal assistência ao paciente em todas
as situações, pois o próprio Código de Ética Médica diz em seu artigo 84 ser vedado
ao médico “Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha prestando assistência, exceto quando
houver indícios de morte violenta”.
Apenas na indisponibilidade do médico assistente o médico substituto ou plantonista fica incumbido
de preencher a declaração para óbitos de pacientes internados sob regime hospitalar, ou o médico
designado pela instituição que prestava assistência, para óbitos de pacientes sob regime ambulatorial.
Podem também assumir a tarefa o médico do Programa de Saúde da Família, Programa de Internação
Domiciliar e outros assemelhados, para óbitos de pacientes em tratamento sob regime domiciliar.
Para efeito de informação, o SVO pode ser acionado
para emissão da declaração de óbito em qualquer uma das situações relatadas, caso
o médico não consiga correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento
registrado nos prontuários dessas instituições. Essa brecha tem o intuito de melhorar a informação
epidemiológica e depende da concordância da família.
Nos casos em que não há assistência médica, deve assinar o médico
do SVO, nas localidades que dispõem desse tipo de serviço. Não havendo, o médico do serviço
público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento ou seja, o médico de UBS e UPA têm
a responsabilidade de verificar o óbito e preencher a declaração.
O médico pode observar se o paciente estava vinculado a serviços de atendimento
ambulatorial ou programas de atendimento domiciliar e se as anotações do seu prontuário ou ficha médica
permitem a emissão da declaração de óbito por profissionais ligados a esses serviços ou
programas, mas tal circunstância não o impede de preencher e assinar a declaração.
Outra situação que exige orientações
diferenciadas é o da declaração de óbito em casos de morte violenta, responsabilidade do perito
oficial médico legista. No caso, o médico assistente não assina o atestado, pois trata-se de, potencialmente,
óbitos relacionados a crimes de ação pública incondicionada. Acaba que a autoridade tem que ser
informada, e pedirá não apenas um atestado de óbito, mas uma perícia realizada por médicos
concursados especialmente para este fim.
Esta perícia, que é parte de um inquérito policial,
tem que ser solicitada criteriosamente, pois é realizada sobre um ser humano, com familiares enlutados e gerando atrasos
em procedimentos de velórios e funerais. Também expõe os familiares a investigação e persecução
penal, de modo que o IML não se presta a apenas "tirar dúvidas" ou suprir a falta de estrutura da epidemiologia.
Quando o médico não quer assinar o atestado por suspeitar
de morte de causa externa, deve ele mesmo comunicar a autoridade policial os motivos ou sinais pelos quais ele suspeita de
causa de morte externa, pois os familiares não são capazes de repassar tais informações ao delegado.
A título de curiosidade, quais seriam
as consequências legais e éticas na hipótese de um médico do serviço público emitir
uma declaração de óbito para alguém que faleceu sem assistência médica e posteriormente
houver suspeita de envenenamento? Ao constatar o óbito e emitir a declaração de óbito, o médico
deve proceder a um cuidadoso exame externo do cadáver, a fim de afastar qualquer suspeita de causa externa. Como o
médico não acompanhou o paciente, nem recebeu informações sobre essa suspeita, não tendo,
portanto, certeza da causa básica do óbito, ele deverá anotar na variável causa “óbito
de causa indeterminada sem sinais de violência”.
Se futuramente se detectar alguma causa externa, não
há como responsabilizar o médico perante a Justiça se tiver anotado no campo correto “não
há sinais externos de violência”, conforme orientação do manual de preenchimento de declarações
de óbito do Ministério da Saúde. Cabe aqui relembrar que o atendimento deve ter um prontuário
adequadamente preenchido e arquivado.
Em casos
de morte súbita, em geral, o falecido pode ser encaminhado para o SVO, se existir na localidade. Estima-se uma morte
a cada três mil atletas por ano e que a cada duzentos mil jovens saudáveis um morre por cardiomiopatia hipertrófica.
Morte súbita não é sinônimo de morte suspeita, pelo menos para fins criminais.
Apresentamos as legislações pertinentes, começando
pelo Código de Ética Médica, que veda ao médico:
Art. 77. Prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias
da morte do paciente sob seus cuidados, além das contidas na declaração de óbito, salvo por expresso
consentimento do seu representante legal.
Art.
80. Expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não
corresponda à verdade.
Art. 81. Atestar
como forma de obter vantagens.
Art.
82. Usar formulários de instituições públicas para prescrever ou atestar fatos verificados na
clínica privada.
O artigo 80, reparem,
exige a confecção do prontuário além da emissão do atestado
Especificamente quanto ao atestado de óbito, também é vedado:
Art. 83. Atestar óbito quando não o tenha verificado
pessoalmente, ou quando não tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer
como plantonista, médico substituto ou em caso de necropsia e verificação médico-legal.
Art. 84. Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha
prestando assistência, exceto quando houver indícios de morte violenta.
Art. 91. Deixar de atestar atos executados no exercício profissional, quando
solicitado pelo paciente ou por seu representante legal.
Se atestar, deve ser realizado um registro válido do atendimento, pois o Código veda ainda:
Art. 87. Deixar de elaborar prontuário legível para
cada paciente.
§ 1º O prontuário
deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada
avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico
no Conselho Regional de Medicina.
§
2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente.
Conforme o artigo 83, o óbito precisa ser verificado pessoalmente,
examinando o corpo do falecido e verificando sua identidade. Ainda que seu atendimento médico foi somente para a constatação
de óbito, não há impedimento ético para o preenchimento da declaração, uma vez que
você passa a ser considerado um médico substituto. Ao contrário, deixar de preencher o documento é
que se encaixa na descrição do artigo 91.
Na esfera jurídica, o Código Penal diz o seguinte:
Certidão ou atestado ideologicamente falso
Art. 301 - Atestar ou certificar falsamente, em razão de
função pública, fato ou circunstância que habilite alguém a obter cargo público,
isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou qualquer outra vantagem.
Pena - detenção, de dois meses a um ano.
Falsidade material de atestado ou certidão
§ 1º - Falsificar, no todo ou em parte, atestado ou certidão,
ou alterar o teor de certidão ou de atestado verdadeiro, para prova de fato ou circunstância que habilite alguém
a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou
qualquer outra vantagem.
Pena - detenção,
de três meses a dois anos.
§
2º - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se, além da pena privativa de liberdade, a de multa.
Falsidade de atestado médico
Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão,
atestado falso.
Pena - detenção,
de um mês a um ano.
Parágrafo
único - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
O familiar do falecido também responde juridicamente por uso de documento falso,
nos termos do Código Penal:
Uso
de documento falso
Art. 304 -
Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302.
Pena - a cominada à falsificação ou à
alteração.
É oportuno
observar que tais crimes envolvem dolo para se caracterizarem, o que justifica a isenção do médico de
responsabilidades citada no manual do ministério da saúde.
Seguindo pelas legislações menores, há também o “Manual de
Instruções para o Preenchimento da Declaração de Óbito”, elaborado pela FUNASA, que
reflete portarias do órgão e informa ser o médico responsável por todas as informações
contidas na declaração de óbito, a qual não deverá ser assinada em branco ou conter declarações
previamente assinadas. Além disso, o médico deve verificar se todos os itens de identificação
estão devida e corretamente preenchidos, e o preenchimento deve ser feito à máquina ou em letra de forma
com caneta esferográfica, sem emendas ou rasuras, sempre que possível. Caso ocorram, o conjunto deverá
ser anulado e encaminhado ao setor de processamento para controle (NÃO RASGAR!).
Sugere-se ainda evitar deixar campos em branco, colocando o código correspondente
a “Ignorado” ou um traço (-) quando não se conhecer a informação solicitada ou não
se aplicar ao item correspondente. Deve-se observar que há um número de série no documento e um controle
de quem a pegou, ou seja, uma declaração não pode sumir, pois há risco de fraude em relação
ao documento.
Outro item relevante e que merece
atenção diz respeito às vias do documento. Após devidamente preenchida, a primeira via da declaração
é recolhida nas Unidades Notificadoras, devendo ficar em poder do setor responsável pelo processamento dos dados,
na instância municipal ou estadual; a segunda via será entregue pela família ao cartório do registro
civil, devendo nele ficar arquivada para os procedimentos legais; e a terceira via permanecerá nas Unidades Notificadoras,
em casos de óbitos notificados pelos estabelecimentos de saúde, IML ou SVO, para ser anexada à documentação
médica pertencente ao falecido (se for fora do hospital, irá para a secretaria de saúde).
Há de ressaltar a obrigatoriedade de assinar a declaração
onde não houver SVO em casos de morte natural sem assistência médica, em localidades com médico.
Ocorridos geralmente em domicílio, esses óbitos deverão ficar sob a responsabilidade do SVO, cujo médico
preencherá a declaração de óbito, que deve ser recolhida pelo órgão responsável.
Quando não existir SVO, qualquer médico do serviço público terá obrigação
de preencher o documento, sem ônus. O Manual ainda trata de casos onde não houver médico, informando que
seu preenchimento ficará a cargo do cartório de registro civil, segundo o prescrito na Lei do Registro Civil,
conforme abaixo:
Art. 77. Nenhum sepultamento
será feito sem certidão do Oficial de Registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura
do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas
pessoas qualificadas que tenham presenciado ou verificado a morte.
O Conselho Federal de Medicina, além de todas essas normativas, no intuito de orientar objetivamente
os médicos, publicou recentemente a Resolução CFM n.º 2.381/2024, que normatiza a emissão
de documentos e dá outras providências, cujo artigo
2º diz que “Documentos médicos
são aqueles emitidos por médicos e gozam de presunção de veracidade, produzindo os efeitos legais
para os quais se destinam”.
No que
diz respeito à veracidade, o atestado pode ser classificado como idôneo (isento de vícios); gracioso (admiração
do paciente, podendo haver ganho secundário ao médico); imprudente (informações não constatadas
pelo médico, tendo apenas o crédito da palavra de quem o solicita); e falso (fornecido para uso indevido e criminoso,
de caráter doloso). Essa veracidade, consequentemente, é crucial para garantir legitimidade e eficácia
aos documentos.
Decerto, essa preocupação
da classe médica com a responsabilidade sobre a emissão de atestados de óbito é compreensível,
dado que a morte de uma pessoa acarreta uma série de efeitos jurídicos que exigem rigor e precisão na
documentação. O correto preenchimento da declaração de óbito é fundamental, pois
não apenas formaliza a morte, mas também inicia processos legais que podem afetar direitos dos envolvidos.
*Ermelino Franco Becker é conselheiro corregedor-geral do
CRM-PR.
**As opiniões emitidas nos artigos
desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente,
o entendimento do CRM-PR.