20/05/2019

As entrelinhas da relação médico-paciente

Caroline Patricio Caldeira

Eis que um paciente procura por um médico...

De um lado, temos um ser humano angustiado com os sinais e os sintomas que o seu corpo não cansa de manifestar e, mais do que isso, machucado pelas mazelas psíquicas que se depositam ao longo de anos e anos e que, literalmente, ninguém vê. Hoje, resolveu não mais adiar a consulta que, há cerca de 3 meses, tem sido deixada em terceiro plano porque vive preocupado em perder horas no trabalho ou em ser desaprovado pela chefia pela entrega de um eventual atestado médico, ou simplesmente porque tinha compromissos que julgou mais importantes do que cuidar da própria saúde. Avisou ao contrariado patrão que chegaria mais tarde, chegou ao consultório 15 minutos antes do horário da consulta e já foi informado que o médico está com a agenda atrasada. Senta-se na sala de espera inquieto e mau humorado, afinal de contas, se chegou no horário adequado, quer igualmente ser atendido no horário correto. Sem contar que o seu chefe não costuma sequer ouvir explicações sobre qualquer atraso adicional. É o décimo paciente da agenda. E, enfim, com 20 minutos de atraso, o médico chama pelo paciente, que adentra o consultório com uma ligeira antipatia pré-concebida pela falha no horário.

Do outro lado, temos, igualmente, um ser humano. Este acabou tendo que, de última hora, cobrir um plantão noturno de outro colega médico que teve um acidente de trânsito e acabou não podendo cumprir a escala. Passou a noite inteira praticamente sem descanso algum, porque o plantão foi muito mais movimentado do que imaginava e o local de trabalho é insalubre e com escassez de recursos. E, além disso, a madrugada turbulenta lhe causou um pequeno atraso no início do seu atendimento em consultório e sua primeira paciente acabou lhe tratando de forma bastante rude por causa disso. Sem contar que, há 6 meses, sofre de uma insônia terrível, alimentada ainda mais por uma crise conjugal, e tem se automedicado sem sucesso. Não passa pela sua cabeça procurar ajuda médica para si mesmo, por mais que um colega psiquiatra tenha apontado algumas alterações no seu humor. Enfim, a vida não está na melhor fase e o dia não começou muito bem. Chama, então, seu décimo paciente do dia.

No consultório, o início da consulta é marcado por um frio aperto de mãos. O médico inicia suas perguntas e, diante do interrogatório incisivo e impessoal, o paciente devolve respostas automáticas e superficiais. Por não se sentir acolhido, este não ousa mencionar sequer um dos seus sofrimentos psíquicos, mesmo que esse fator poderia auxiliar no melhor entendimento daquele pico pressórico evidenciado no rápido exame físico. E, pensando bem, também não foi com a cara desse médico que atrasa consultas e tem aparência de cansado. A última esperança de encontrar alguém que consiga o enxergar integralmente é suprimida.

O médico, por seu lado, é ágil em diagnosticar as doenças do corpo, soma todos os sinais e sintomas em uma única equação e chega ao diagnóstico certeiro, bem assim, como uma ciência exata. Empunha sua caneta e trata logo de fazer a receita com as mais eficazes e novas medicações de altíssimo custo, afinal, o paciente possivelmente vai conseguir pagar. Até percebeu um semblante triste ao examiná-lo, mas não quer atrasar ainda mais as consultas com assuntos que não dizem respeito à sua especialidade e podem ser tratados por algum profissional da psicologia. Sela-se o final da consulta com outro frio e desapontado aperto de mãos. Nos seus âmagos, ambos notam os vazios de suas entregas, mas nada fazem.

Percebe-se que o “doente” não está apenas de um lado da mesa... E a falta de humanidade e empatia também não!

Mas o que mais dói é constatar que a deterioração das relações médico-paciente é apenas uma das várias demonstrações da decadência das relações humanas como um todo. Vivemos em uma sociedade em que a empatia se tornou rara, o individualismo impera, a intenção finalística são coisas e não pessoas, as relações são frequentemente tóxicas e padecemos de um velado e contínuo processo de adoecimento mental e social.

Artigo escrito pela médica Caroline Patricio Caldeira (CRM-PR 28.654). Formada pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Clínica Médica, atua no desenvolvimento e gestão de Programas de Promoção de Saúde e Prevenção de Doenças no setor suplementar.

**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR. 

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