02/12/2007
As doenças da emoção
É quase certo que, ao demonstrar um desconforto físico, você já tenha ouvido que está "somatizando". Mas o que é exatamente
somatização? Trata-se de um processo pelo qual distúrbios de origem psíquica, emocional, traduzem-se em mal-estar, com ou
sem causa orgânica definida. Os dez problemas mais relatados pelos somatizadores são dor no peito, fadiga, tontura, dor de
cabeça, inchaço, dor nas costas, falta de ar, insônia, dor abdominal e torpor. Não faz tanto tempo assim, a esmagadora maioria
dos médicos ocidentais relegava tais pacientes ao limbo de um ramo até então pouco prestigiado da psiquiatria - o da medicina
psicossomática. Mas esse quadro começa a mudar.
Muitos clínicos estão dando mais atenção aos quadros de somatização. Eles, agora, procuram escutar os somatizadores da
forma preconizada por Maimônides, um médico mouro do século XII: "Uma consulta deve durar uma hora. Durante dez minutos, ausculte
os órgãos do paciente. Nos cinqüenta minutos restantes, sonde-lhe a alma". Com isso, passaram a oferecer meios de tratar o
seu padecimento atual e evitar os futuros, em vez de se apressarem em livrar-se dos "neuróticos". Além disso, equipes de pesquisadores
dedicam-se a tentar desvendar os mecanismos pelos quais as emoções podem resultar em afecções. Vários deles, inclusive, já
foram descobertos (veja quadro). Pode-se dizer que a medicina ocidental está revendo o dogma de que sintomas só são passíveis
de tratamento se originados em problemas físicos descritos cientificamente. Nesse caminho, segue a trilha da antiga medicina
oriental, segundo a qual um sintoma, mesmo sem causa orgânica suficientemente identificada, é, em si, um desequilíbrio a ser
curado.
Embora desde o grego Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental, haja registros de processos de somatização,
o fenômeno só ganhou um nome no início do século XX. O médico austríaco Wilhelm Stekel, um dos pioneiros da psicanálise, lançou
a expressão alemã organsprache ("fala dos órgãos") para denominar sintomas físicos associados precipuamente ao lado psíquico.
Na versão para o inglês, o termo foi traduzido como somatization, palavra criada a partir do radical grego "soma", corpo.
Atualmente, os médicos fazem uma distinção entre transtorno somatoforme e somatização. O primeiro caracteriza-se por queixas
físicas recorrentes, mas sem causas detectáveis por exames clínicos ou de imagem. É o caso, por exemplo, de um paciente que
reclama de dores de estômago, mas, submetido a uma endoscopia, não apresenta nenhuma lesão nesse órgão. Para que a doença
seja diagnosticada como um transtorno somatoforme, é preciso que a pessoa exiba um ou mais sintomas por um período mínimo
de seis meses. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, 20% da população do planeta manifesta quadros da doença. "Os
sintomas são reais. O sofrimento desses pacientes não é menor do que o daqueles que apresentam problemas com causas orgânicas
bem definidas", disse a VEJA a psiquiatra americana Lesley Allen, especialista no assunto.
A palavra somatização, por sua vez, hoje é usada especificamente para as doenças identificáveis por meio de exames, desencadeadas
por sobrecarga emocional. Certas doenças têm um componente fortemente somático. É o caso de asma, úlceras, fibromialgia, gastrite,
alergias e herpes, principalmente. As situações que mais deflagram respostas somáticas são as de stress decorrente de um luto
ou de uma separação conjugal. Para não falar da onipresente depressão, é claro. "Na verdade, não existe um só sentimento que
não tenha uma repercussão física. O que varia é a intensidade da emoção e a vulnerabilidade do corpo", afirma o psiquiatra
Geraldo Ballone, de Campinas.
É freqüente confundir somatização com hipocondria. São coisas completamente diferentes. O hipocondríaco é alguém preocupado
em excesso com a própria morte. Seu medo é tanto que ele freqüentemente interpreta um mal-estar passageiro como um sinal de
doença grave. O exemplo perfeito é o do personagem de Woody Allen no filme Hannah e Suas Irmãs, que tinha certeza de que suas
dores de cabeça eram um sintoma de um tumor no cérebro e, por isso, submetia-se a tomografias da cabeça como quem tira pressão
arterial. O que somatizadores e hipocondríacos têm em comum são as idas freqüentes ao médico. "As somatizações são responsáveis
por um número muito alto de consultas", diz o psiquiatra José Atilio Bombana, da Universidade Federal de São Paulo. Calcula-se
que até a metade de todos os gastos do sistema público de saúde deva-se a somatizações.
Do ponto de vista fisiológico, já se sabe que o processo de somatização ocorre no eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal
(veja quadro). Com o auxílio da medicina molecular e exames de imagem de altíssima precisão, está-se conseguindo mapear em
detalhes os canais de comunicação entre o cérebro e os sistemas imunológico e endócrino. A interação entre corpo e mente se
dá por meio de uma intrincada rede de hormônios, proteínas e neurotransmissores que não cessam de interagir. Os cientistas
querem definir o que ocorre ao certo quando há um descompasso entre o cérebro e esses sistemas, especialmente nos momentos
emocionais mais críticos. Apesar de haver uma longa estrada a ser percorrida, ao entender em parte como os sentimentos afetam
o organismo, a medicina deu um passo adiante rumo à prevenção e à cura de doenças típicas da somatização.
No plano estatístico, as evidências da relação entre o psicológico e o físico sempre foram elusivas. Não são mais. Dois
estudos publicados neste ano, um no Jornal da Associação Médica Americana (Jama) e outro no Archives of Internal Medicine,
atestam a conexão. No primeiro deles, rea-lizado com quase 1.000 pacientes, entre 35 e 59 anos, vítimas de infarto que exerciam
funções com grande demanda emocional mostraram-se duas vezes mais predispostas a sofrer um novo evento cardíaco. No segundo
estudo, o professor de psicologia Sheldon Cohen, da Universidade Carnegie Mellon, analisou 319 artigos médicos que relacionavam
emoções intensas com falhas do sistema imunológico. Ele concluiu que tais emoções podem acelerar a progressão até mesmo de
males associados à aids. Há também uma pesquisa notável, levada a cabo por médicos ingleses do London College. Depois de acompanharem
9.000 pessoas durante doze anos, eles descobriram que os que tinham relacionamentos íntimos marcados por brigas e conflitos
sofriam 34% mais risco de apresentar um distúrbio cardiovascular.
Não se pode incorrer no simplismo de afirmar, como fazem alguns psicólogos, que toda e qualquer doença tem origem nos
sentimentos. "Mas é provável que, por determinação genética, haja pessoas mais propensas a ficar doentes por causa de emoções
excessivas", diz o psiquiatra Mario Alfredo De Marco, da Universidade Federal de São Paulo. A mesma situação pode ser mais
desgastante para uma pessoa e menos para outra, não apenas pelo perfil psicológico de cada uma, mas por efeito de uma tendência
genética para reações hormonais mais ou menos fortes. Fatores culturais também são relevantes. Um levantamento aponta que
os brasileiros estão entre os campeões de somatização (veja o mapa na pág. 164). "Comportamentos histriônicos ou contidos
demais podem resultar no aparecimento de afecções", diz o psiquiatra Bombana.
Estudos mostram que um bom suporte afetivo e determinados tipos de terapia psicológica são capazes de melhorar a resposta
imunológica até mesmo em pacientes de câncer. Uma das linhas de pesquisa mais avançadas nessa área é a da professora americana
Lesley Allen. Ela defende a terapia cognitivo-comportamental, associada a técnicas de relaxamento, exercícios moderados e
uso de antidepressivos, para diminuir a severidade dos sintomas entre os somatizadores. Os antidepressivos, aliás, têm fornecido
resultados surpreendentes. Pacientes tratados com esses remédios apresentaram uma redução considerável nas idas ao médico,
especialmente aqueles que sofriam da síndrome da fadiga crônica, distúrbio recorrente entre os somatizadores. Outra linha
de pesquisa também começa a esboçar-se. No início de novembro passado, a equipe do pesquisador Hitoshi Sakano, da Universidade
de Tóquio, criou em laboratório ratos que não têm medo de gatos. Por meio de alterações genéticas, os cientistas conseguiram
remover determinadas células do sistema olfativo dos roedores, responsáveis por detectar a presença de ameaças. Ao terem esse
grupo de células desligado, as cobaias aproximaram-se de um gato sem manifestar pavor. Essa experiência representa um avanço
na direção de remédios próprios para o controle de emoções que podem causar problemas físicos.
Não se trata, é claro, de demonizar o lado sentimental. De sugerir que todos sejamos robôs gélidos. Tanto os sentimentos
bons quanto os ruins foram - e são - fundamentais para a preservação da espécie, como demonstrou o naturalista inglês Charles
Darwin, o primeiro a estudar de forma abrangente a influência das emoções instintivas no processo evolutivo. Se elas nos trouxeram
até aqui, compreendê-las pode nos levar ainda mais longe do ponto de vista da saúde física. Na falta da pílula mágica que
tudo amenize ou controle (e com a qual sonhava até mesmo Sigmund Freud, o pai da psicanálise), cabe a todos nós tentar evitar
que sejamos possuídos por sentimentos que redundem em sofrimento físico. Expressá-los sem medo é uma boa medida. Dito assim,
parece simples. Não é. Até mesmo os pacientes mais articulados encontram dificuldades ao traduzir seus sentimentos em palavras.
O escritor americano William Styron, um dos que melhor expressaram a tristeza e a melancolia, descreveu sua dor psíquica constante
como "algo tão misteriosamente doloroso que não é possível nem por meio de mediação intelectual chegar perto de uma descrição".
Sim, as palavras nem sempre alcançam a alma.
Fonte: Revista Veja