16/08/2007
Antidepressivos, aspirinas e urubus
Os antidepressivos são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar qualquer tristeza?
A febre se manifesta numa longa lista de moléstias: gripe, infecções bacterianas, insolação e por aí vai. Em todos esses
casos, a aspirina combate a febre, mas não cura a enfermidade em que ela se manifesta. Para isso, cada enfermidade tem remédios
próprios (quando tem): antibióticos, sulfamídicos, cortisona etc.
Pergunta: segundo a psiquiatria, os antidepressivos atuais são um remédio específico para uma moléstia chamada "depressão"?
Ou são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar a tristeza e a morosidade que se manifestam numa variedade de situações
de vida e de quadros clínicos? Ou será que podem ser as duas coisas?
Pois bem, graças a um amigo, Célio G. Marques de Godoy, que me indicou o artigo, li uma pesquisa publicada recentemente
no "New England Journal of Medicine" (2007, vol. 356, 17). A pesquisa testa a "eficácia do tratamento auxiliar com antidepressivos
na depressão de pacientes bipolares". Uma explicação: na clínica psiquiátrica, os transtornos bipolares são um quadro bem
distinto da depressão. Neles, o sujeito alterna fases depressivas com fases de euforia maníaca; as fases depressivas são mais
longas do que as maníacas, mas a alternância é crucial para o diagnóstico. Em suma, um bipolar em fase depressiva se parece
com um deprimido, mas isso não significa que ele sofra da mesma "moléstia".
Na pesquisa, trata se de saber se, num quadro diferente da depressão, os antidepressivos podem funcionar ou não como
uma aspirina que aliviaria qualquer tristeza. A resposta, no caso dos transtornos bipolares, é negativa: os antidepressivos
não funcionam como a aspirina com a febre. No entanto, eis o conselho paradoxal dos pesquisadores: se um paciente bipolar
já estiver tomando antidepressivos, melhor que continue, embora a pesquisa mostre que eles não parecem aliviar sua fase depressiva.
Por que a recomendação?
Pois é, literalmente, porque nunca se sabe. Essa incerteza faz a felicidade dos urubus, que faturam com o uso dos antidepressivos
como se fossem aspirina. Mas ela é também o retrato fiel do estado de nossa clínica e de nossa ciência. Vamos lá:
1) Os antidepressivos atuais foram descobertos quando alguém administrou um derivado da hydrazina a pacientes tuberculosos.
O efeito inesperado (e único) foi que eles ficaram mais alegres.
2) Mais tarde, descobriu se que a mesma substância aumentava (pouco importa como) a quantidade de um neurotransmissor
no cérebro (a serotonina).
3) Supondo que essa alteração fosse responsável pelo bom humor dos pacientes tuberculosos, decidiu se experimentar o
uso de substâncias análogas em pacientes deprimidos.
4) Para isso, foi necessário construir um padrão de comportamentos e afetos que identificassem os deprimidos; nasceu
assim "a depressão". De fato, entre 30 e 40% dos sujeitos que correspondem a esse padrão se beneficiam com o uso dessas substâncias.
5) Por que não todos? a) A definição padrão da depressão é comportamental, afetiva e discursiva, não química, pois é
difícil verificar o nível de serotonina no cérebro das pessoas; b) portanto, é possível que muitas depressões sejam conformes
ao padrão comportamental e afetivo estabelecido, mas que se expressem por alterações químicas diferentes da insuficiência
de serotonina; c) conclusão: reagiriam positivamente a antidepressivos só aqueles deprimidos que expressam quimicamente sua
depressão pela diminuição da serotonina no cérebro. Como identificá los? Só experimentando.
6) Assim como haveria depressões que não se expressam pela insuficiência da serotonina, é também possível que haja, fora
da depressão, tristezas e morosidades que se expressem por uma falta de serotonina. Nesses casos, os antidepressivos ajudariam.
Como identificá los? Só experimentando.
Em suma, o uso dos antidepressivos é empírico. Compara se à administração de antibióticos específicos diante de um quadro
no qual nenhuma cultura bacteriana pudesse nos dizer se o paciente é infectado ou não pela bactéria que o antibiótico está
atacando.
É uma razão para condenar os antidepressivos? Não. Mas é bom saber que nossa ciência e nossa clínica os administram balbuciando.
Correção da coluna passada: "Goldfinger" não é o primeiro James Bond com Sean Connery; é o segundo. Agradeço os leitores que
me assinalaram o erro.
ccalligari@uol.com.br
Fonte: Folha de S.Paulo, 16/08/2007