24/02/2006
"Alguma coisa está errada por aqui"
Em 17 de fevereiro último, tomei posse na Faculdade de Medicina da USP envolvido por sentimentos intensos. O primeiro deles
de reconhecimento pela graça. Num país que tem 53 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, eu consegui escapar.
Num país onde apenas 10% da população adulta chegou à universidade, eu consegui ser incluído. Num país que agora tem 305 mil
médicos e menos de 50 atingem a posição de professor titular na USP, eu fui escolhido.
Estava tomado, também, por outro sentimento. Passava a ter uma nova tribuna para debater três temas seminais da área médica,
ainda não bem resolvidos e que me despertam um certo desconforto: o sentido real da ciência e da pesquisa em nosso meio, o
nosso papel como educadores médicos e a iniqüidade dos sistemas públicos de saúde.
Quando falo em sentido real da ciência e pesquisa, penso que o nosso país não despertou completamente para uma nova realidade,
que está transformando as sociedades mais desenvolvidas. Nelas, consolidou-se um novo paradigma, segundo o qual os investimentos
em pesquisa devem ser intensamente promovidos sempre que eles ampliarem o estoque de conhecimentos e forem seguidos de desenvolvimento
tecnológico, ou seja, quando produzirem avanços que beneficiem a sociedade e promovam o bem-estar do homem. Aqui no Brasil,
essa idéia não foi bem compreendida, por isso, o conhecimento tem sido gerado sem um compromisso maior com a qualidade e com
sua aplicação prática enriquecedora. Como conseqüência, importamos o saber e remetemos anualmente para o exterior cerca de
US$ 4 bilhões, sob o rótulo de "transferência de tecnologia". Para quem não entendeu, US$ 4 bilhões representam quase o dobro
de tudo o que o governo federal destina para a educação do povo brasileiro a cada ano.
O papel transformador que a promoção da ciência e da pesquisa pode ter sobre o destino de uma nação tem na Coréia um exemplo
emblemático. Em 1976, o Brasil registrou nos Estados Unidos três vezes mais patentes do que a Coréia e a nossa renda per capita
era três vezes maior. Com investimentos maciços em educação e em desenvolvimento tecnológico, a Coréia registrou, no ano de
2004, cerca de 4.000 patentes nos Estados Unidos; o Brasil, somente 220. Nesse mesmo ano, a renda per capita na Coréia atingiu
US$ 20.400; no Brasil, ela foi de apenas US$ 7.700.
A segunda questão seminal que me sensibiliza é a da educação médica. O exercício da medicina realizado na sua dimensão
maior apóia-se em dois pilares: o conhecimento científico e o humanismo. Este conceito, aparentemente óbvio, explica por que
o bom médico não é aquele apenas dotado de ilustração técnica mas também aquele que tem compaixão e estabelece relações humanas
profundas, aquele que se posta ao lado do seu paciente, como leal companheiro de viagem.
Com toda a intolerância que prevalece na nossa sociedade, incapaz de aceitar até os fatos médicos inexoráveis, como a
decadência física pela idade e as doenças ou a morte incontornáveis, com todo o ambiente indigente no qual atua um sem-número
de médicos brasileiros e com todas as imperfeições da natureza humana, que atinge inclusive os médicos, é ainda possível produzir
bons médicos? Tenho certeza de que sim.
Michelangelo dizia que cada bloco de mármore bruto esconde uma figura esculpida, pronta para ser liberada com um pouco
de trabalho e talento. Essa é a função dos educadores médicos. Descobrir nos blocos amorfos os pequeninos Davis e Pietás dotados
não apenas de conhecimentos para curar mas principalmente de sentimentos humanísticos genuínos que irão reconfortar. E moldar
nos blocos amorfos cidadãos que, além de amenizar o sofrimento, sejam capazes de influenciar suas comunidades, modificando
o cotidiano das pessoas, transformando a sociedade e ajudando a desenhar um novo país.
Finalmente, na área de assistência médica, mais do que propor soluções para o nosso sistema público de saúde, injusto
e perdulário, gostaria de expressar um pouco das minhas angústias. De acordo com o Projeto do Milênio, patrocinado pelas Nações
Unidas, se cada país em desenvolvimento aplicar corretamente, a cada ano, US$ 110 por habitante, ao cabo de dez anos estarão
resolvidos os problemas da fome, da mortalidade materna e infantil e das doenças transmissíveis que assolam os países do Terceiro
Mundo. No Brasil, são gastos, anualmente, US$ 124 por habitante na área de saúde e nem o mais convicto otimista pode achar
que as coisas estão bem ou irão ficar bem. Alguma coisa está errada por aqui!
A bem da verdade, não só aqui mas também em todo o planeta. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, enquanto no
Japão a expectativa de vida da população aproxima-se de 85 anos, existem 13 países no mundo, os mais pobres, obviamente, onde
a expectativa de vida é menor que 35 anos; em Serra Leoa, a vida média de seus habitantes é de apenas 26 anos. A própria Organização
Mundial da Saúde dá uma das explicações para essa injustiça, a chamada "desproporção 10/90": Cerca de 90% dos recursos mundiais
gastos na saúde são consumidos pelos 10% mais ricos da população; os restantes 90% dos habitantes do planeta recebem apenas
10% do total de recursos. Fico aflito quando leio isso; meu desconforto aumenta quando desconfio que isso deva estar acontecendo
no Brasil.
Infelizmente minhas aflições não terminam por aí; na verdade, elas se tornam quase insuportáveis quando descubro que o
Brasil pagou, em 2005, R$ 157 bilhões de juros da sua dívida. Cento e cinqüenta e sete bilhões de juros, sem reduzir a nossa
dívida e sem atenuar as injustiças, a penúria e a desigualdade no Brasil. Cento e cinqüenta e sete bilhões de juros, enquanto
o governo federal gastou somente R$ 7 bilhões com a educação e R$ 33 bilhões com a saúde para assistir a todo o povo brasileiro.
Não quero ser panfletário, muito menos pregar a irresponsabilidade, mas alguma coisa está errada por aqui!
No início do texto, lembrei que 53 milhões de brasileiros vivem abaixo dos limites da dignidade humana, o que me remete
a um outro país, aquele dos outros 132 milhões, onde, em algumas áreas, a renda per capita anual chegou a quase R$ 17 mil
em 2003 (no Maranhão foi inferior a R$ 2.500), onde os índices de analfabetismo situam-se em 7% (na região Nordeste é de 31%),
onde a taxa de mortalidade infantil em 2003 foi de 17 para cada mil nascimentos (no Maranhão foi de 56). Como membro do grupo
dos 132, sou tomado por uma aflição quase insuportável quando imagino que o outro Brasil pode estar cantando Chico Buarque
de Holanda: "Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Sei que há
léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar".
Enquanto nossos governantes não oferecem os barcos e portos seguros, acho que não custa nada tentarmos fazer a nossa parte.