18/06/2019
José Eduardo de Siqueira
É razoável produzir um ensaio com a finalidade de estabelecer analogias entre a tela A volta do filho pródigo, de Rembrandt, e o exercício da medicina? Poderíamos argumentar inicialmente que o pintor holandês se inspirou nas três parábolas sobre misericórdia e perdão proclamadas por Jesus, relatadas unicamente no Evangelho de Lucas. Nos textos atribuídos aos outros evangelistas, Mateus, Marcos e João, não há qualquer menção a essa passagem da vida de Cristo. Considerando que Lucas era médico e empenhado em anunciar as ações de misericórdia e perdão de Jesus, voltadas especialmente para os pagãos, pessoas que à época viviam excluídas do projeto de salvação, parece que temos uma boa justificativa para enfrentar esse desafio.
A volta do filho pródigo é, provavelmente, um dos últimos quadros pintados pelo mestre holandês do século XVII e encontra-se exposto no Museu Hermitage, de São Petersburgo, na Rússia. Ao adquirir o bilhete de ingresso, nesse que é considerado um dos mais importantes museus do mundo, o visitante já se apercebe da importância da obra, pois nele figura a imagem da tela em pauta. Mais do que qualquer outro pintor, Rembrandt concebeu sua arte pictórica movido pelo desejo de envolver o observador num ambiente de grande emoção. Ao estabelecer como prioritário na missão de Cristo o acolhimento aos mais vulneráveis, Lucas valeu-se de seus conhecimentos como médico habituado a atender pessoas fragilizadas pelas enfermidades de então, razão por que lhe foi atribuída a honraria de patrono da medicina.
A parábola do filho pródigo, assim como as duas que a antecedem no evangelho de Lucas, a da ovelha perdida e a do dracma perdido, tem como escopo revelar a magnanimidade do amor de Deus, que acolhe incondicionalmente os pecadores na busca pelo perdão, e o resgate da saúde espiritual, caminho esse em tudo similar ao percorrido pelos pacientes em busca da cura de suas enfermidades físicas por meio do atendimento médico.
O texto de Lucas (Lc 15, 11-32) apresenta três personagens emblemáticos: o pai, o filho mais novo (o denominado “pródigo”) e o filho mais velho (o que permaneceu junto ao pai na propriedade da família). O mais novo, que arrependido retorna à casa paterna após ter dispersado toda sua herança numa vida dissoluta, prostra-se diante do pai implorando por perdão e acolhimento. O pai, movido por misericórdia, se regozija com a volta do filho que se encontrava perdido e o acolhe com cálida e nobre recepção. Na descrição do evangelista, o filho mais velho estava no campo no momento do encontro do pai com seu irmão que retornou. Relata Lucas: “Quando voltava para casa ouviu músicas e danças. Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar”.
Qual teria sido o motivo que levou Rembrandt, contrariando o texto sagrado, a retratar os irmãos juntos nesse momento de grande comoção? Ao contemplar a obra-prima do mestre holandês podemos imaginar as possíveis intenções do pintor. Vamos, portanto, buscar os detalhes que permitam revelar as emoções que dominam cada uma das três figuras humanas retratadas pelo artista. Antes, porém, é necessário destacar a relevância da luz que envolve os personagens pintados por Rembrandt, recurso que usava com frequência para orientar o olhar do observador para os pontos de maior dramaticidade estampados em suas telas.
Muitos especialistas, diante das emoções despertadas ao contemplar pinturas famosas, costumam usar a expressão: “essa tela fala por si só”. A volta do filho pródigo de Rembrandt, a nosso ver, é um dos maiores e mais ricos exemplos dessa percepção dos grandes experts em artes plásticas. Senão vejamos: a figura do filho mais velho, envolvido pelo mesmo rico manto que cobre o dorso do pai, revela sua condição de nobreza ou, melhor dizendo, sua condição de pessoa que sempre partilhou das riquezas e do conforto do domicílio paterno como primogênito altivo, herdeiro da fortuna paterna, mostrando-se apto para ordenar e ser obedecido por seus subordinados. Ele mantém-se em pé, distante do irmão que retornou à casa paterna após revelar total incapacidade para gerir sua própria vida. A luz que o envolve restringe-se a sua cabeça e evidencia um olhar de superioridade, as mãos cruzadas denotando atitude de desprezo àquele trapo humano prostrado aos pés do pai, em tudo evidenciando uma ausência total de misericórdia pelo pecador arrependido.
Segundo as palavras do evangelista, o filho mais velho teve seu orgulho ferido ante a incompreensível atitude de acolhimento do pai, o que fez com que se negasse a participar da festa em homenagem àquele devasso, identificando-o, ao dirigir-se ao pai, como “esse teu filho”, o que demonstra todo seu ódio e desalento por não ter recebido a mesma atenção do pai, apesar de ter permanecido sempre fiel e obediente às ordens paternas. O filho pródigo que retorna é retratado por Rembrandt como um pária marcado pela decadência física e moral, com a cabeça raspada como a de um escravo, ajoelhado e sem forças, a roupa esfarrapada, desprovido de manto, sandálias rotas que permitem observar o pé direito impregnado de sujeira, demonstrando seu mais profundo sofrimento moral; o pé esquerdo com feridas que sangram retratam as dores decorrentes da penosa jornada de sofrimento físico. A única evidência que denota sua origem nobre é a adaga na cintura (encoberta pelo pano que envolve seu corpo), pois à época somente os nobres detinham o direito de portá-la.
A figura do pai que abraça o filho é central e dela emana uma intensa luz que se propaga da cabeça até o piso do aposento, encobrindo a figura do filho pródigo. O pai é representado como um homem sereno, de barba e cabelos brancos, com os olhos fechados. Em torno dele, paira uma aura de extrema ternura. Um detalhe que chama muito a atenção do observador é a assimetria anatômica das mãos do pai. A direita com traços suaves, quase femininos, parece amparar o sofrimento moral do jovem; já a esquerda é forte e suporta todo o peso do corpo alquebrado do filho pródigo, levando-nos a presumir que oferece amparo ao sofrimento físico daquela pessoa que acumulou tantos padecimentos ao longo de sua infeliz jornada. Em suma, tudo indica que o pai representa a figura misericordiosa descrita por Lucas, aquele que não somente perdoa como reintegra o filho pródigo à família, devolvendo-lhe toda a dignidade perdida.
Pois bem, para concluir essa reflexão, restaria oferecer resposta à indagação formulada no início desse ensaio, ou seja, quais seriam as possíveis analogias entre a história retratada na obra-prima de Rembrandt e o exercício da medicina? Parece natural reconhecer a similaridade do filho pródigo da tela do mestre holandês com um paciente anônimo que, fragilizado, busca por atendimento médico. Ambos, como seres biopsicossociais e espirituais, encontram-se com suas vidas ameaçadas e apelam pela assistência de autoridade dotada de saber, capaz de oferecer o desejado retorno à plena saúde física e emocional. Não será demasiado, outrossim, reconhecer a grande semelhança do sofrimento do filho pródigo da passagem do evangelho de Lucas com o de inúmeros pacientes humildes, usuários do sistema público de saúde de nosso país? Em síntese, o filho pródigo de Rembrandt frequenta os ambulatórios médicos, sendo atendido pelos docentes e acadêmicos de nossas faculdades de medicina.
Quais semelhanças poderíamos perceber entre as figuras do pai e do filho mais velho retratados na tela e os profissionais que exercem atualmente a medicina no Brasil? Certamente, poucos deles, em suas atividades rotineiras, se aproximariam da atitude acolhedora do pai, diferentemente do proposto por Gaillard em sua obra O médico do futuro: para uma nova lógica médica1, onde o autor descreve seis etapas necessárias para caracterizar o ato médico: o acolhimento seguido de anamnese, exame físico, diagnóstico, prescrição e separação.
O que se percebe na assistência médica atual é uma realidade totalmente diversa, que consiste em prestar atendimento no menor tempo possível, prescrever qualquer droga sintomática ao paciente, solicitar alguns exames laboratoriais e desfazer-se desse incômodo e mal pago compromisso. Na medicina high-tech, que substitui a do high-touch, não há mais lugar para o toque, o acolhimento, o exame físico detalhado. Muitas são as alegações que pretendem explicar esse abstruso comportamento profissional, mas todas incapazes de justificá-lo. Entre elas, apontam-se os baixos salários e o insuficiente investimento em saúde pública, o que, sem dúvida, faz ampliar a distância entre médico e paciente. Mas tais atitudes também revelam, por um lado, a mesquinha arrogância do saber e, por outro, a progressiva adesão dos profissionais à enganosa e perversa medicina defensiva, condições essas que tornam mais eloquente a semelhança do médico de nossos dias com a figura do filho mais velho retratado por Rembrandt, com o mesmo intolerável desprezo pelo sofrimento humano, quer seja dirigido ao irmão mais novo da passagem do evangelho de Lucas, quer seja destinado aos pacientes humildes espalhados por todos os rincões desse nosso país injusto e desigual.
É fundamental, portanto, intensificar as buscas por novas estratégias que visem formar médicos que mais se assemelhem à figura do pai da obra-prima de Rembrandt, profissionais que detenham habilidades para acolher e reconhecer a real dimensão do sofrimento humano, que saibam manter relação dialógica eficaz e sejam preparados para adotar decisões clínicas compartilhadas, que respeitem os valores e crenças pessoais dos pacientes por eles atendidos. Não faltam dados da literatura especializada2,3 que demonstram de forma inequívoca a necessidade de os egressos dos cursos de graduação seres dotados dessas novas atitudes para o exercício profissional, para que possam honrar os ensinamentos do pai da medicina, que fez constar entre seus preceitos o seguinte mandamento: “Onde está o amor ao homem [paciente], estará presente também o amor à arte [médica]”4.
*José Eduardo de Siqueira é médico especialista em Cardiologia; mestre em Bioética pela Universidade Nacional do Chile; doutor em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); membro da Câmara Técnica de Cuidados Paliativos do CFM; membro titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e autor de diversos livros nas áreas de bioética e medicina. Foi conselheiro do CRM-PR (1998-2003), onde integra a Câmara Técnica de Reprodução Assistida.
**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.
Referências:
1 - GAILLARD, J. R. O médico do futuro: para uma nova lógica médica. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995
2 - CENTRO INTERNACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS TRANSDISCIPLINARES. Que universidade para o amanhã?:
em busca de uma evolução transdisciplinar da universidade. Locarno: Ciret-Unesco, 1997
3 - FRENK, J. et al. Health professionals
for a new century: transforming education to strengthen health systems in an independent world. The Lancet, Oxford, v. 576,
n. 9756, p. 1923-1958, 2010.
4 - Cairus, F. H. Ribeiro Junior, W. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005