20/07/2009
A segunda reforma sanitária
SÃO INEGÁVEIS os avanços conquistados pelo Sistema Único de Saúde desde sua criação, há cerca de 20 anos. Apesar de enfrentar
um contexto de dificuldades, relacionadas com a realidade econômica e social do país e com a questão da garantia de recursos
regulares e suficientes para suas atividades, o SUS ampliou de forma significativa o acesso dos brasileiros aos cuidados de
saúde e melhorou muito os indicadores de qualidade de vida da população.
Mesmo reafirmando as premissas de universalidade, integralidade e equidade, temos que reconhecer que o modelo
atual de operacionalização do sistema apresenta algumas dificuldades insuperáveis. Embora as capacidades econômicas sejam
bastante diferentes nas muitas regiões do país, nenhuma delas, mesmo as mais desenvolvidas, pode se gabar de possuir uma rede
sanitária considerada exemplar pela população usuária.
Poucos hospitais públicos pertencentes ao sistema são tidos como modelo pela população. Sem dúvida, muitos
citarão como serviços públicos de excelência a Rede Sarah de Hospitais, o Instituto do Coração (InCor) o Instituto Nacional
de Câncer (Inca). Todos anteriores ao SUS.
A pergunta que se coloca é: por que não surgiu com o SUS nenhum novo centro médico de excelência?
A atenção básica em saúde, porta de entrada do sistema, continua enfrentando dificuldades na alocação de profissionais
nas periferias das áreas metropolitanas e em muitas regiões carentes do interior do país. A qualidade e a eficiência de suas
ações, em diversas localidades, ainda deixam a desejar, seja no novo modelo do Programa de Saúde da Família, seja no tradicional
dos postos de saúde.
O país continua a ter dois sistemas de saúde -o SUS, para atender a cerca de 70% da população, e o sistema
de saúde suplementar- absolutamente desarticulados, com superposição de ações e atendimentos desintegrados e, muitas vezes,
conflitantes.
Assim, novas propostas e mudanças se fazem urgentes para que o SUS possa avançar. Tal como ocorreu no movimento
da reforma sanitária que precedeu a criação do SUS, precisamos de um novo movimento entre os "pensadores" e gestores do sistema
para que novas propostas possam surgir e ser debatidas, aperfeiçoadas e incorporadas pelo SUS.
No gerenciamento de hospitais e unidades de saúde, por exemplo, essa discussão iniciou-se há pouco no Ministério
da Saúde, que, reconhecendo a insuficiência do modelo existente, propôs as fundações estatais, precedido pela experiência
bem-sucedida das organizações sociais de saúde em São Paulo. Mas outras mudanças precisam ser pensadas e implementadas.
Por que não reconhecer a necessidade de mudar as formas de remuneração de médicos do setor público, tornando
o salário uma consequência direta da produtividade e da qualidade do serviço do profissional?
Isto é, por que não usar as formas de remuneração desenvolvidas pelo setor privado, que tem avançado continuamente
e detém em muitas regiões os melhores equipamentos de saúde à disposição da população?
Por que não tratar a medicina suplementar como um sistema verdadeiramente complementar ao SUS? Isso implicaria
reconhecer que determinados procedimentos não serão, obrigatoriamente, realizados pelos seguros e planos de saúde privados,
mas pelo SUS, em elenco que poderia incluir procedimentos de urgência, controle de doenças transmissíveis e medicamentos oncológicos,
áreas em que o SUS detém, em muitos casos, mais experiência e competência do que o setor privado.
Como contrapartida, poderíamos ter a criação de uma contribuição "automática" per capita, que seria paga pelos
planos privados diretamente ao SUS, sem necessidade de processos longos e ineficientes de ressarcimento, facilitando o atendimento
aos pacientes dos dois sistemas, com a melhora evidente da saúde de todos.
Por que não reconhecer que as dificuldades em áreas como a assistência farmacêutica exigem novo arcabouço
institucional e legal?
Há que implantar um novo subsistema de dispensação de medicamentos a toda a população, semelhante aos programas
exitosos do coquetel de Aids e Farmácia Popular, que padronize, dê previsibilidade aos gastos do SUS nesse setor e permita
à população acesso fácil ao medicamento de que necessita.
Todas essas mudanças podem ser efetivadas sem abandonar em nenhum momento a ideia da saúde como direito universal.
Porém, para implantá-las, é necessário coragem para derrubar algumas verdades e alguns dogmas do século passado e substituí-los
pela avaliação isenta das dificuldades vivenciadas nos 20 anos do SUS.
Para progredir e avançar, será preciso iniciar já o movimento da segunda reforma sanitária do Estado brasileiro.
O artigo é de autoria de LUIZ ROBERTO BARRADAS BARATA, 56, médico sanitarista e Secretário de Estado da Saúde de
São Paulo. O texto foi publicado no Jornal O Estado de São Paulo, em 20/07/2009.