30/09/2013
Editorial do jornal Gazeta do Povo
Profissionais da medicina precisam desenvolver agenda positiva, fazendo da crise gerada pelo Mais Médicos um degrau para avanços na saúde pública
O ano de 2013 vai ser lembrado como aquele em que a medicina no Brasil passou por um tsunami. O programa Mais Médicos, do governo federal, se tornou alvo de toda a sorte de impropérios. Ainda se pode ouvir o eco da voz de Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), tachando o projeto de “demagógico, eleitoreiro, populista, atrasado”. Na batalha verbal, os médicos saíram em desvantagem. Havia uma demanda reprimida na sociedade em relação à categoria, que no imaginário do cidadão comum paga a conta pelas deficiências dos serviços de saúde no país. Os predicados creditados pelos populares aos médicos em geral não são cartas de amor: corporativistas, ligeiros no atendimento, não raro negligentes.
Infelizmente, tudo indica que o governo não assinou a Medida Provisória 621, de 8 de julho, apenas para sanar a falta de profissionais de medicina nos rincões do país. Aproveitou a deixa para tirar proveito da má fase dos médicos com a população. Nesse sentido, o protesto de D’Ávila merece o eco que teve. Houve uma dose de covardia nessa história. Trouxe efeitos colaterais. Numa das centenas de textos publicados na imprensa sobre o assunto, um dos mais contundentes – do filósofo Luiz Felipe Pondé – chama o governo de fascista. Acusa a turma de Brasília de agir com os médicos da mesma maneira como Hitler um dia agiu com os judeus, demonizando-os, reduzindo-os a comerciantes preocupados com a reserva de mercado.
Ora, não é preciso um grande raciocínio para saber que as opiniões genéricas sobre os médicos são o que são: genéricas. Nesse exato momento, milhares de profissionais estão fazendo valer o juramento de Hipócrates e exercendo sua profissão com lisura, pois isso lhes é natural. Como diz o ditado popular, não é por causa dos bêbados que se vai jogar todo o vinho fora. A indignação dos médicos com as investidas do governo faz o maior sentido. Não podem aceitar o rótulo antipático que lhes foi colocado, e ponto.
Salvo que o ressentimento não é um bom conselheiro. O atual estado das coisas exige uma agenda positiva. Urge não só lamentar a geografia médica do país – alta concentração nas capitais, baixa concentração no interior. Tem-se de entender por que se tornou cada vez mais rara a figura do médico idealista, que se instalava para cidades pequenas. Mudou a medicina – que se sofisticou. Mudaram os médicos. E esse é o ponto de partida.
Mal não faria ao governo aplicar inteligência e criatividade para conseguir mobilidade médica. Alguns dirão “bem que tentou”, mas o fez de forma autoritária, sem dialogar com a sociedade organizada. A grita toda dos profissionais reside aí. Na semana passada, os próprios paranaenses viram aonde pode chegar a indignação: para não ferir a própria consciência, como alegou, o presidente do CRM do Paraná, Alexandre Bley, renunciou ao posto.
Bley pôs mais uma vez à mostra o estado de ânimo da discussão. Não haverá paz tão cedo se o governo não admitir que usou de estratégias duvidosas para resolver uma relação muito delicada. A estratégia – tratar centenas de médicos estrangeiros como intercambistas, logo, bolsistas – soou como uma negativa das pautas de reivindicações dos profissionais da medicina. Foi como se a alegada falta de condições para o exercício do ofício, em determinadas partes do país, não passasse de conversa mole.
Do outro lado, cabe aos médicos reconhecer que o governo tinha de tomar uma atitude, e que os próprios calos da medicina dificultam qualquer sorte de negociação. Difícil. Crente nisso, o Ministério da Saúde não pediu licença e veio como um rolo compressor. Tinha a seu favor os dados nauseabundos do setor. Respondeu com baldes de pipoca: num informe, fez o anúncio de que são 681 profissionais à espera de autorização e boa vontade dos CRMs; noutro, a informação de que em outubro receberemos mais 2 mil cubanos.
É um morde sem assopra. Dados bem azeitados, saídos do Ipea, mostram que a medicina tem a mais alta taxa de ocupação e os melhores salários. A escassez concorre a favor da categoria. Faltam médicos. Fóruns governamentais precisam se formar – para que a defesa dos médicos ganhe forma e a discussão vá para além desse telecatch que se formou.
Por certo, o debate revelará que a questão é muito mais orgânica do que se imagina. A falta de profissionais passa pela estrutura capenga do interior brasileiro: estradas, escolas, conexão. A lista vai longe. Quem quer viver nessas distâncias insalubres? A medicina é a carência mais notória, mas são tantas que a sigla “Mais” poderia ser aplicada a pelo menos uma dezena de categorias profissionais.
Editorial do jornal Gazeta do Povo publicado no dia 30 de setembro de 2013.