Saúde não é filme de ficção
Recentemente, o Conselho Federal
de Medicina (CFM) surpreendeu ao divulgar a resolução nº 2.227/18, que trata de diretrizes sobre a telemedicina no Brasil.
De acordo com essas novas normas, "os médicos brasileiros poderão realizar consultas online, assim como telecirurgias e telediagnósticos,
entre outras formas de atendimento".
Para os conselheiros do CFM, entre os benefícios da nova medida está a possibilidade
de "levar saúde de qualidade a cidades do interior do Brasil, que nem sempre conseguem atrair médicos", além de supostamente
beneficiar grandes centros, ao reduzir o estrangulamento no sistema convencional causado pela grande demanda.
Focado
na categoria mais vulnerável da população, que já carece de tantos serviços básicos para "sobreviver", o texto propõe, entre
outras atividades à distância, que cidadãos moradores de áreas isoladas ou regiões sem a presença do médico tenham acesso
a um atendimento via celular ou computador.
Reflitamos: considerando o simples fato de que uma teleconsulta pode
gerar inúmeros problemas, tanto para médicos como para pacientes --seja por diagnósticos equivocados ou vazamento de informações
confidenciais, entre tantas consequências negativas--, é preciso uma estrutura tecnológica impecável para pôr em prática tal
proposta.
Onde ainda reinam antenas parabólicas, espera-se a disponibilidade de tablets e telefones celulares de
última geração?
Pesquisa do IBGE de 2018 revelou que 1) só 43,6% das pessoas com nenhum grau de escolaridade possuíam
um aparelho móvel em 2016; e 2) entre pessoas com mais de 60 anos, o índice de uso de aparelhos celulares chegava a apenas
60,9%, devido ao grau de dificuldade que esta faixa da população tem para lidar com tecnologia.
Além disso, há
que se considerar que em diversos municípios o acesso à internet ainda é precário. As populações mais distantes e mais necessitadas
nem sequer possuem um celular em casa, que dirá um smartphone com internet de boa qualidade!
É preciso analisar
a saúde do país sob um ângulo mais amplo e atento às discrepantes realidades locais. A tecnologia tem revolucionado a existência
humana, em todas as áreas, e não poderia ser diferente na medicina e na saúde. Mas estas requerem cuidados especiais, dadas
as suas peculiaridades, e uma estrutura de trabalho compatível.
As novas gerações de médicos precisam estar preparadas
para atender melhor seus pacientes, com diagnósticos cada vez mais precisos e terapias específicas, e esses são fruto de uma
boa anamnese, do cuidadoso exame físico, da indicação da conduta correta e de um acompanhamento evolutivo.
A proposta
do CFM surge mais como uma pretensa cura para uma área que, há décadas, agoniza em nosso país: a saúde. Se atentarmos à proposta,
ela agirá como um placebo e poderá causar danos irreversíveis, além de onerar o sistema público com intervenções mais complexas
e decorrentes de diagnósticos equivocados, por exemplo.
A saúde brasileira está doente. Ao observarmos propostas
como essa, explicitada pela resolução 2.227/18, corremos o sério risco de deixarmos de contribuir com a missão que nos cabe:
lutar por condições dignas de trabalho e cuidar, com responsabilidade, do ser humano. Por isso, antes de falarmos em consultas
virtuais ou definirmos "áreas remotas", precisamos olhar nossos hospitais, nossos médicos e outras demandas sociais basais.
*Dr. Mario Jorge Tsuchiya é Presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina
do Estado de São Paulo).
**Artigo publicado em 16 de fevereiro de
2019 no jornal Folha de S. Paulo.
***As opiniões emitidas nos artigos
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