09/06/2008
Cícero de Andrade Urban
“Quando a morte é o maior perigo, se espera na vida; mas quando se encontra um perigo ainda maior, se espera na morte. Entretanto quando este perigo é tão grande que a morte se torna a esperança, o desespero é a não esperança de não poder nem mesmo morrer” (S. Kieerkegaard).
O desenvolvimento científico permitiu uma melhora importante e sem precedentes da qualidade de vida e um aumento substancial da sua longevidade nos países ocidentais. Este último aspecto trouxe um elemento completamente novo na sociedade pós-moderna: convive-se mais e por mais tempo com as doenças crônicas. Dessa forma, surgiu uma nova angústia, o temor da não-vida ou da não-morte, daquele estádio intermediário e prolongado de sofrimento que é ainda mais inquietante do que a própria morte e que trouxe dilemas antes desconhecidos. Assim, o debate sobre a eutanásia se intensificou, mesmo que a sua essência ético-filosófica não tenha se modificado muito nos últimos 50 anos.
Não existem, de fato, razões fisiológicas, biológicas ou clínicas para acelerar o processo de morrer. Existem sim razões antropológicas, éticas, culturais e religiosas, favoráveis ou contrárias, que estão envolvidas dentro deste difícil debate. Dessa forma, a eutanásia deixa de ser um problema interno e exclusivo da medicina atual para se transformar em algo muito mais amplo e complexo, que transcende ao universo biológico e ao da medicina científica e passa a atingir a toda a sociedade.
Alguns dos defensores da sua legitimidade moral e, portanto da despenalização ou mesmo da legalização da eutanásia, tendem a enquadrá-la como perfeitamente compatível com o ambiente que existe dentro das sociedades liberais e democráticas, justo porque são elas que devem promover cultura dos direitos. Esta, todavia, é uma simplificação jurídica que não é compartilhada por todos os autores que se dedicam a esta questão.
No Brasil o debate sobre a eutanásia encontra-se em um âmbito superficial dentro da sociedade e mesmo entre os médicos e outros profissionais de saúde e legisladores, que tendem a permanecer no discurso acima explicitado. É necessário, por outro lado, uma reflexão maior e mais aprofundada dos diversos aspectos antropológicos, éticos, sociais e culturais existentes nos discursos pró e contra a eutanásia antes de se posicionar a respeito no nosso meio.
Aqueles que se opõem à eutanásia, mesmo não negando o valor que a autonomia e o alívio do sofrimento possuem, defendem que a cada direito reconhecido a nível social e jurídico, venha implicado também um dever. Portanto o argumento de que a questão da eutanásia deva ser colocada como limitada ao exercício da liberdade individual, por si só não seria suficiente. A relação entre o direito e o dever, necessária em todas as sociedades modernas, demonstra que a liberdade está presente mesmo onde estão limitadas algumas escolhas individuais. Nenhuma sociedade democrática pode existir sem elaborar critérios de justiça e, portanto, que não limite de alguma maneira a autonomia dos seus cidadãos.
Os debates bioéticos sobre a eutanásia, apesar de encontrarem grande apelo na sociedade globalizada, têm pouca relevância do ponto de vista epidemiológico no Brasil. São raros os pacientes, familiares ou profissionais que efetivamente desejariam realizá-los na prática, mesmo se estes procedimentos fossem permitidos. Além disso, entre os oncologistas, que são os médicos mais expostos ao tratamento dos pacientes terminais, ainda não é consenso de que com a eutanásia se possam melhorar os cuidados no final da vida. Um estudo envolvendo 3299 membros da Sociedade Americana de Oncologia, encontrou que a eutanásia teve o apoio de apenas 22,5% dos oncologistas. Entre os participantes da pesquisa, apenas 3,7% já havia realizado eutanásia. Os oncologistas entrevistados também consideram que os pedidos de eutanásia diminuem com a melhoria dos cuidados paliativos.
Vivemos uma realidade onde o acesso ao diagnóstico e ao melhor tratamento ainda está muito distante do ideal existente nos países desenvolvidos. A legalização da eutanásia pode representar um risco à pessoa do paciente terminal e um duro golpe ao relacionamento médico-paciente de base hipocrática. Pode ser mais fácil e conveniente eliminar mais do que cuidar. O debate, portanto, deve ser redirecionado ao outro foco, o da ortotanásia. Ou seja, o de não prolongar desnecessariamente o processo de morrer.
Cícero de Andrade Urban é médico oncologista e mastologista, professor de Bioética e Metodologia Científica no Curso de Medicina e no Mestrado em Odontologia Clínica do UnicenP. Colaborador do Instituto de Ciência e Fé.