04/02/2015
Guilherme Spadini
Quem não se mantém atualizado sobre o assunto pode ter dificuldade para lembrar quais as últimas acusações feitas contra médicos no Brasil. No momento, o repúdio dos médicos à nova norma sobre indicação de partos é o assunto em destaque. Mas, já estiveram em evidência a máfia das próteses, os médicos que burlam o relógio de ponto, o grupo do facebook em que médicos falavam mal de nordestinos, enfim, sempre tem mais algum escândalo.
Não tenho intenção nenhuma de defender ninguém, médico ou não, que tenha cometido absurdos. Há médicos que infringem leis, que desrespeitam a ética, que se vendem por dinheiro, que são preconceituosos. Quero mais é que todos respondam por seus vícios de caráter, como eu respondo pelos meus. Isso não me impede de desconfiar demais dessa campanha de difamação contra toda uma classe profissional. Quando isso começou? E quem ganha com isso?
Não é nada que eu tenha sido o primeiro a perguntar. Já em 2013, Luiz Felipe Pondé publicou uma coluna na Folha acusando o "fascismo do PT contra os médicos". Segundo ele, os médicos seriam os "judeus do PT", uma classe contra quem o governo teria interesse em arregimentar o ódio, como forma de se fortalecer (fazendo uma analogia ao nazismo). É uma afirmação exagerada, que cheira a paranoia. Mas, as constantes publicações inflamadas sobre o tema mostram que algum fenômeno está acontecendo.
O momento mais contundente envolveu o programa Mais Médicos. Para boa parte da sociedade brasileira foi incompreensível, se não revoltante, que a maioria dos médicos tenha sido contrária ao programa. A classe foi acusada de se opor à importação de profissionais por desejar manter uma reserva de mercado. De não se importar com a saúde pública. A presidente afirmou que os médicos cubanos são mais humanos que os brasileiros. Os poucos médicos que foram ofender os colegas estrangeiros no aeroporto contribuíram para arruinar a imagem da classe. Mas, a verdade é que essas distorções foram prontamente aceitas pela sociedade por já corresponderem ao imaginário popular. Médicos já são vistos como vilões há algum tempo.
Programas como "Mais Médicos", ou "Mais Especialistas", são bem aceitos porque capitalizam essa imagem. Eles oferecem o diagnóstico de que a culpa pelos problemas da saúde é dos médicos. Pela incompetência e egoísmo dos médicos brasileiros, que se recusam a atender as populações carentes. Basta trazer mais médicos "humanizados", e todos os problemas serão resolvidos. É um conto de fadas, mas a sociedade engole feliz. Por quê?
A resposta a essa pergunta é complexa. Algumas pessoas acham que a medicina foi se tornando tão complexa, técnica e cara, que os médicos se distanciaram dos aspectos mais humanos da profissão. Tornaram-se mecânicos do corpo, não mais cuidadores de pessoas. Essa explicação parece ótima. Mas, na verdade, médicos nunca foram vistos como parceiros humanizados. Médicos, nos primórdios, eram mais próximos dos deuses que dos homens. Quando a figura do médico técnico foi se consolidando, eles passaram a ser vistos como uma classe socialmente especial. Não eram, necessariamente, nobres, nem ricos, mas também não eram a plebe. Médicos nunca foram retratados, em obras de ficção ou documentos históricos, como seres afetivos e empáticos, mas como técnicos cheios de si, avoados, apressados, muitas vezes incompetentes. Talvez nunca tenha havido uma época com tanta atenção aos aspectos humanísticos da medicina quando a nossa.
A questão, acredito, é que médicos sempre atuaram em uma situação peculiar de intensa desproporcionalidade social. Médicos estabelecem relações através de uma assimetria de poder, inevitável. Por diferentes que sejam os contextos sociais: se o poder está no dinheiro, na terra, no título de nobreza, ou até na divindade; o homem mais poderoso do mundo, ao adoecer, tem um médico lhe dando ordens. Enquanto as sociedades humanas estiveram confortáveis com essa ideia de hierarquia entre os homens, isso não foi um problema tão grande. Nas sociedades modernas, porém, aprendemos a acusar hierarquias, contestar relações de poder, pregar a igualdade da dignidade humana, e as liberdades individuais. Isso não é nenhum problema para a medicina, mas requer que tradições sejam repensadas, bem como o papel do médico. Médicos detestam ver sua independência e autonomia ameaçadas. Quando se sabe exatamente o que fazer para salvar uma vida, é muito frustrante ser impedido de agir por uma norma social. Porém, essa prerrogativa pode dar margem a muitos abusos. Daí haver tantas normas éticas, tantas regulamentações sobre condutas, e tantos processos.
Acredito que essa transformação nas relações de poder, em geral, e no papel do médico, especificamente, possa ajudar a entender como a imagem dos médicos deteriorou tanto nas últimas décadas. Mas, ainda não explica a campanha de difamação.
Alguns acham que há um interesse do governo em criar um bode expiatório. Alguns acusam um lobby dos convênios e planos de saúde, para desvalorizar a profissão. Outros vêm uma instância da luta "proletariado versus elites". Eu prefiro tentar entender isso tudo como um fenômeno cultural. Eu acho que o médico é um meritocrata em sua essência. Ninguém faz medicina porque é um atalho para muito dinheiro ou para uma vida fácil. Médicos não ficam mais ricos, como muita gente ainda imagina. Mas, sim, médicos esperam ganhar dinheiro e ter uma vida digna, porque esperam se dedicar, estudar, trabalhar e passar por muita pressão, diariamente, para assegurar isso. Médicos acreditam nesse valor do trabalho, da excelência, do conhecimento. São virtudes inerentes ao exercício da medicina, mas decadentes em nossa sociedade. Na dicotomia tacanha entre direita e esquerda, entre "trabalhador" e "patrão", é necessário que se possa separar os aproveitadores, que cortam caminhos e acumulam riquezas, dos operários, que são pura função social. Essa figura bizarra do profissional excelente, que quer se destacar por seus méritos, e ganhar muito bem por isso, não se encaixa.
Estou descrevendo estereótipos, é claro. Os exemplos de maus médicos serão, sempre, os principais responsáveis por denegrir a profissão. Mas, enquanto eu tenho muita dificuldade para entender que ameaça a classe médica representa para esse governo, reconheço de imediato o quanto a meritocracia é ameaçadora. Não acredito que haja uma campanha intencional contra os médicos. Mas acredito que essa classe acabe por representar valores que são contrários aos interesses do governo, e esteja sofrendo o baque dessa oposição, ao ressoar com uma desconfiança da sociedade que é cultural, e anterior às questões políticas envolvidas.
É difícil saber quem ganha, mas é fácil ver quem perde. Perdem os médicos. Perde a saúde no Brasil. E perde a sociedade, como um todo, ao ver desvalorizada uma classe que poderia representar ideais de competência, excelência e dedicação como poucas outras.
Artigo escrito pelo médico Guilherme Spadini e publicado no Brasil Post.
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