11/01/2010
A ortotanásia e o testamento
É possível no Brasil fazer-se, não exatamente um testamento, mas uma disposição de vontade através de escritura pública
declaratória
As reflexões sobre a ortotanásia (morte natural, sem interferência médica) expostas na Gazeta do Povo nas últimas semanas
provocam nossas mais profundas reflexões. Quando visitamos aquele parente ou amigo que se encontra irremediavelmente enfermo,
lembramos de outros tantos e seu calvário antes do fim, nos questionamos também sobre nosso próprio destino.
A doença de Alzheimer que a todos cerca, e outras enfermidades "da moda" - embaladas pela longevidade conquistada pela
medicina e pela saúde pública - também nos tocará? É possível fazermos algo agora, que estamos bem, para o dia que não seja
mais possível tomar decisões sobre o nosso próprio destino? O projeto de lei aprovado pela Comissão de Justiça do Senado,
infeliz e inexplicavelmente não prevê essa possibilidade, ou seja, o chamado testamento vital ou testamento vivo, uma escritura
pública feita perante o tabelião, na qual declara-se como deseja ser tratado em caso de perda da consciência.
Como se sabe, o testamento no Brasil é um instrumento que só surte efeito após a morte, um instrumento onde se preparara
a sucessão dos bens, não podendo haver quaisquer previsão enquanto o testador viver. A criação de um documento com vontades
antecipadas para o caso de incapacidade mental é atribuída ao advogado norte-americano Luis Kutner (1908-1993) que foi um
ativista dos direitos humanos. A situação de um amigo sofrendo de uma lenta agonia instigou-lhe a redatar o seu "living will"
(testamento vivo) o primeiro de que se tem conhecimento, quase 60 anos antes de sua própria morte.
A provocação de Kutner levou a criação de inúmeros debates naquele país, várias associações se formaram, culminando com
uma disseminada cultura de preparo deste documento não somente nos EUA, mas em vários outros países. É interessante destacar
os principais conceitos enumerados por Kutner que devem permear este documento: 1. Ter uma base para poder tratar de forma
díspar os homicidas por compaixão e os assassinos maliciosos, que eram tratados de forma igual. (referindo-se aos médicos).
2. Permitir ao paciente seu direito de morrer, se for o seu desejo. 3. Manifestar o direito de morrer do paciente quando incapaz
de manifestar-se por si próprio. 4. Para os propósitos anteriores, dotar o paciente às garantias para que não haja engano
ou dúvida na aplicação de sua vontade expressa no documento. Atualmente, naquele país, encontra-se disponível em praticamente
todos os hospitais um formulário explicando o que é este documento e como fazê-lo.
A determinação foi prescrita pela Corte Suprema no ano de 1990, baseada no caso de Nancy Crusman, que em 1983 perdeu o
controle de seu carro, ficando inconsciente em vida vegetativa, supostamente sem chance de reabilitação. Seu marido e seus
pais solicitaram então ao hospital que retirassem os procedimentos de nutrição e hidratação assistida. Como os médicos e a
instituição se negaram, o caso foi parar no Judiciário, cujo pronunciamento foi a favor da família baseado nos seguintes argumentos:
diagnóstico de dano cerebral permanente e irreversível, em consequência do longo período de anoxia; a lei do Estado de Missouri
e da Constituição norte-americana que permitem que uma pessoa pode recusar ou solicitar a retirada de "procedimentos que prolonguem
a vida", o que a mesma havia declarado numa conversa com uma colega de quarto.
Na lápide de Cruzan consta a seguinte indicação: Nascida aos 20 de julho de 1957, partiu em 11 de janeiro de 1983 e, "em
paz aos 26 de dezembro de 1990." Independentemente de a lei brasileira ser aprovada e de uma suposta mudança legislativa,
pesamos que é possível no Brasil fazer-se, não exatamente um testamento, mas uma disposição de vontade através de escritura
pública declaratória. Neste instrumento poderão constar pessoas que autorizem determinados procedimentos, que venham a administrar
os bens, doação de órgãos e deixar claro qual a vontade do paciente com relação a tratamentos extremos.
Esta escritura poderá ser questionada, mas sem dúvida vai balizar a decisão dos juízes encarregados, bem como no procedimento
do médico. Para alguns há que ser dada esta opção, pois consideram a vida vegetativa uma espécie de calvário, uma negação
à própria condição humana. A questão é polêmica, mas sem dúvida está na hora da sociedade brasileira começar a enfrentá-la.
Angelo Volpi Neto é tabelião de notas, escritor e articulista, titular do 7º tabelionato de notas de Curitiba.