22/03/2021
Clodomiro José Bannwart Júnior
No filme “O sétimo Selo”, Ingmar Bergman retrata a marcha do cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro que retornam das Cruzadas e encontram o país assolado pela peste. Durante a viagem, sempre acompanhados de perto pela morte, eles se deparam com ladrões, fanáticos e patifes de toda sorte.
Há tempos cruzamos caminhos os mais diversos na busca de um país que, infelizmente, encontra-se desalojado de sua identidade. Tem sido uma travessia inglória. Pelo caminho, encontra-se gente de toda sorte. Aqueles que professam uma fé traiçoeira, crentes de que a peste não tocará os investidos pelo poder divino. Outros tantos que açodam explicações rasteiras e maniqueístas de situações complexas. Os que insistem num curandeirismo primário e estimulam tratamentos duvidosos. Há ainda os comandos atropelados na condução das questões mais elementares de saúde pública. Os que estão sempre dispostos a afrontar o bom senso e a lógica. E a multiplicidade de vozes arredias com as medidas preventivas, estultas no uso de palavras agressivas e desrespeitosas para com as famílias, centenas de milhares, que perderam seus entes queridos.
Pelo caminho só há desolação, além dos mortos, cujo silêncio e ausência, denunciam o rompimento da sutura que une nossa frágil humanidade. E cada um de nós, abandonados à própria sorte, resta seguir o exemplo do cavaleiro de Bergman: improvisar um pacto, no privado, com a morte.
Enquanto o jogo da morte continua, as questões mais tocantes da existência humana consomem a inquietude de nossas consciências. Em um momento como esse é preciso enfrentar o todo da vida, incluindo, sim, a morte. É da consciência da nossa finitude que extraímos os mais grandiosos exemplos de superação e de fé, sobretudo quando selamos o caixão de pessoas do nosso convívio. É da morte que se colhe o amor incondicional que doamos aos que nos são mais próximos. É dela que talhamos, tal qual um artesão, o sentido e significação das nossas existências e recobramos de beleza e de graça a oportunidade de respirar e de viver.
O jusfilósofo Ronald Dworkin destaca que “o significado intrínseco da vida e a beleza da natureza constituem uma atitude plenamente religiosa perante a vida”. Atitude esta que permite a cada um descobrir o valor transcendente das coisas, tornando o mistério – esse poder invisível que flutua oculto entre nós – parte inerente da emoção de viver e de ser grato pela vida. É nessa perspectiva a postura assumida por Albert Einstein ao afirmar que, embora fosse ateu, era um homem profundamente religioso.
Sartre assevera que “o homem não é outra coisa senão uma série de empreendimentos, a soma das relações que constituem essas empreitadas”. Somos aquilo que fazemos de nós mesmos. Afinal, “só existe realidade na ação”. Assim, o homem se faz, se constrói e se projeta. Cada vida ceifada por negligência daqueles que deveriam proteger a saúde coletivamente representa um assalto ao futuro, pois “o homem é o futuro do homem”. Morre não apenas o indivíduo, mas uma parcela do nosso futuro, um pedaço considerável da nossa humanidade.
Diante da tragédia a que estamos submetidos, é inadmissível permanecer prostrados. Faz-se urgente que o senso da responsabilidade repique como os sinos das catedrais a recordar-nos que o amor, a compaixão e o respeito não podem resignar-se ao estupor provocado pela onda da necropolítica que corta nossa época.
Em cada um de nós está um pouco do cavaleiro Antonius Block. Na profunda escuridão da madrugada, ele sente uma rajada de vento aliviar a alma, porém, ciente de que é preciso manter os olhos abertos, não por falta de sono, mas porque a morte mantém-se à espreita, alimentada pelo cinismo e pela desfaçatez.
*Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.
**Artigo publicado na edição de 19 de março de 2021 no jornal Folha de Londrina e re[produzido com autorização do autor.
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