14/03/2011

A medicina como profissão liberal já deixou de existir no Brasil



Os dados são eloquentes, e foram levantados recentemente para os médicos paulistas pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP). Por exemplo, apenas 2% dos médicos paulistas vivem exclusivamente de pacientes particulares. É uma elite cada vez mais reduzida, pois no início dos anos 80, a proporção era de 10%. Antes da chegada dos planos de saúde e seguradoras médicas, era de 80% (os 20% restantes ficavam por conta dos famosos IAPs, ou Institutos de Aposentadorias e Pensões, criado no governo de Getúlio Vargas, e pelos serviços de saúde pública).


Outro dado interessante é que a atividade médica em consultório caiu 19% no Estado, em relação a 1995. Cada vez mais, os médicos são empregados dos outros: 67% trabalham para a rede pública, e 60% trabalham para a rede privada. Apenas 55% ainda continuam com consultório particular. Essas porcentagens mostram o que já é sobejamente conhecido: a grande maioria dos médicos tem mais de um emprego (em geral, três a quatro empregos), para poder atingir um poder aquisitivo satisfatório. Apesar dessa situação estressante e de excesso de trabalho (são comuns as jornadas de 12 a 14 horas entre os médicos, sem contar os inúmeros plantões de 24 horas ou mais, uma ou mais vezes por semana), a remuneração média do médico brasileiro é baixa e continua caindo: um levantamento feito dois anos atrás mostrava que 50% dos médicos ganhavam 1.500 reais ou menos por mês!


A perda do status liberal tem uma implicação importantíssima: o médico não tem mais controle sobre o quanto deseja cobrar por seus serviços. Nem mesmo os médicos autônomos (com consultório próprio) têm esse privilégio, pois 98 ou 99% das consultas e outros atos médicos são pagos pelos planos de saúde, seguradoras e cooperativas médicas, e são eles que determinam os honorários. Segundo a Dra. Regina Ribeiro Parizi Carvalho, presidente do CREMESP, um dos fatores para a diminuição da atividade baseada em consultório particular tem sido o descredenciamento maciço realizado pelos planos de saú de nos últimos dois anos. São os chamados "convênios", ao mesmo tempo a praga e a salvação financeira dos médicos.


Para piorar as coisas, a remuneração dos atos médicos está cada vez menor, pois os médicos têm perdido poder de barganha. A maioria dos planos de saúde e seguradoras paga entre 20 a 30 reais por uma consulta: em grandes cidades, onde a concorrência é maior, existem planos que estão forçando os médicos a aceitar 10 reais ou menos por consulta. Esse é um preço tremendamente aviltado, insuficiente para manter as despesas do consultório, pagar impostos, etc. A Associação Médica Brasileira elabora periodicamente planilhas de cálculo do custo de operação de um consultório comum, com a finalidade d e determinar o preço mínimo de uma consulta: este valor está em torno de 45 reais, o ideal em torno dos 60 reais; considerando que um médico precisa dedicar pelo menos meia hora, em média, por paciente, para poder dar um atendimento de qualidade. Esse valor mínimo é desrespeitado por todas as fontes pagadoras, do governo à UNIMED (esta, que teoricamente pertence aos próprios médicos, alega não conseguir pagar esses valores, devido ao alto nível de utilização de consultas pelos pacientes beneficiários dos serviços da cooperativa, e em muitas cidades estão operando "no vermelho", mesmo com consultas sendo pagas pela metade do preço ideal).


Resultado de tudo isso, pelo menos do lado dos médicos paulistas: 27% estão insatisfeitos com a profissão, e 53% estão parcialmente satisfeitos. Em consequência, tem acontecido um fenômeno sem precedentes na profissão médica: muitos profissionais estão abandonando os consultórios particulares, pois acabam pagando para trabalhar neles; e estão assumindo empregos em tempo integral ou parcial. Também é maior do que o normal o abandono total da profissão, ou a dedicação a tarefas administrativas e gerenciais, em detrimento da atenção clínica. No passado isso era extremamente raro: estimava-se que 95 a 97% dos médicos continuavam dedicados à profissão 10 anos depois de formados. Não se sabe qual seria esse número atualmente, mas estimo que seja 80% ou menos. É ainda uma continuidade profissional grande, se comparada com outras profissões (entre as enfermeiras, por exemplo, é pouco mais de 50%), mas indica uma tendência alarmante.


A profissão médica está passando por grandes transformações, não há dúvida. Além da brutal perda de autonomia profissional e do status econômico que antes desfrutava, existe também a perda do status social. A mídia e a sociedade começaram a ter uma visão mais crítica sobre a capacidade profissional do médico e a qualidade dos serviços prestadas por ele, enfatizando os erros médicos e a situação muitas vezes caótica e deficitária do sistema de saúde pública (embora a culpa por esta situação não seja dos médicos). A democratização da informação sobre saúde e medicina, promovida pela imprensa, pela TV e pela Internet, além do aumento do nível de escolaridade do brasileiro, também tiraram um pouco o médico do "pedestal" que ocupava na sociedade, apresentando-o não mais como "o" dono da verdade, o profissional incontestável, quase uma divindade. Agora ele é visto como um profissional qualquer, sujeito a enganos, erros e imperfeições. Os pacientes e as instituições confiam muito menos no médico, atitude essa que chega às raias do desrespeito profissional, algumas vezes (alunos e colegas que trabalham em pronto-socorros têm me contado que ocorre serem ameaçados de agressão ou morte por pacientes mais nervosos, que querem atendimento imediato).


O excesso de médicos, e a má qualidade de muitas faculdades, gerando profissionais pouco qualificados e com baixa estima profissional, têm sido responsabilizados como fatores contribuintes para essa situação. De fato, o Brasil tem uma das mais espantosas desigualdades de distribuição de serviços médicos do mundo. Em algumas cidades, como Ribeirão Preto, existe um médico para cada 300 habitantes (simplesmente o triplo do recomendado pela Organização Mundial de Saúde). Em outras cidades, como no interior do Piauí ou do Amazonas, existe um médico para cada 20 mil habitantes. Cerca de 2.000 município s brasileiros não têm nenhum médico residente. Ribeirão Preto está indo para a sua quarta faculdade de medicina, uma concentração absurda e desnecessária. O estado do Piauí tem uma única faculdade de medicina para atender a todo o estado. A enorme concentração de médicos nos maiores estados e cidades leva à uma desvalorização nos honorários e à competição predatória.


Apesar disso, os médicos se recusam a ir trabalhar no interior, mesmo com salários muito maiores do que conseguem nas cidades grandes. São paradoxos que precisam ser solucionados, antes que consigamos resolver os sérios problemas que estão abalando os principais profissionais do sistema de saúde brasileiro.


Artigo escrito pelo médico Kléber Ribeiro Melo (CRM-PR 23015)

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