04/04/2008
A mãe das epidemias?
Não há dúvida de que a dengue é um dos grandes problemas da saúde brasileira no momento. Além do sofrimento físico de milhares,
e da morte precoce de tantas pessoas, inclusive de crianças, o País tem um prejuízo, por causa da fuga de turistas e dos custos
médicos e hospitalares, que poderia ser evitado. Mas essa não é a única epidemia que se espalha pelo Brasil de hoje. Nosso
país vive uma epidemia de epidemias.
Nosso sistema de saúde é um causador de mortes e desconfortos ainda mais graves do que a própria doença. Além da dengue,
temos lepra, febre amarela e outras doenças que já não deveriam fazer parte do mundo moderno. Além disso, nossos hospitais
e postos de saúde são caracterizados por longas filas de pessoas sofrendo na espera de atendimento.
A violência urbana mata mais brasileiros, pelas mãos uns dos outros, do que pelas picadas de mosquitos. Carros também
provocam milhares de vezes mais mortes e mutilações do que o Aedes aegypti. O Brasil vive a epidemia de uma guerra civil.
Não só os acidentes, as horas perdidas no caos do trânsito são uma forma de epidemia, sem febre nem morte, mas que rouba a
vida aos poucos, perdida no vazio do tempo parado. Gera neuroses que se somam, crescem e duram por anos, às vezes para sempre.
Sabe-se inclusive que o aumento de automóveis terminará em breve paralisando totalmente as grandes cidades, mesmo com o uso
de recursos financeiros gigantescos para a construção de vias, viadutos e túneis. Será mais do que uma epidemia, a morte anunciada
do sistema de trânsito urbano, com todas suas conseqüências para a população.
A deseducação é uma epidemia que contamina os cérebros da população brasileira, fazendo-nos um povo sem a produtividade
econômica nem a mobilidade social que a modernidade exige e permite; somos um país que fica para trás em relação aos outros,
e que deixa as pessoas para trás aqui dentro.
O desemprego - principalmente por causa da falta de qualificação profissional -, o sofrimento e a carência de milhões
de brasileiros e suas famílias, por causa da falta de emprego, não são menores do que as dores provocadas pela dengue. O analfabetismo
de 16 milhões de adultos é uma epidemia que o Brasil insiste em não controlar. A cada dia letivo, 1.450 crianças, 60 por minuto
de aula, abandonam a escola, ficando para trás definitivamente, sem concluir o Ensino Médio. Essa é uma epidemia que aflige
não só os brasileiros, mas compromete gravemente a saúde do País.
O que estamos fazendo na Amazônia é uma epidemia com as florestas. As motosserras e os tratores, nas mãos de brasileiros,
estão destruindo o maior patrimônio natural da humanidade.
Todas essas epidemias e outras mais têm uma causa. Nosso pior mosquito se chama imprevidência. Começando pela dengue:
ela se espalha pela imprevidência das autoridades e de cada um de nós, que fechamos os olhos hoje para o que vai acontecer
amanhã.
Por trás de cada um dos nossos problemas de hoje está alguma omissão no passado. A epidemia de dengue é um símbolo, uma
metáfora viva que nos adoece, envergonha, empobrece, mas que também poderia nos despertar. Fazer-nos olhar ao redor, e reconhecer
o que falta fazer. Fazer-nos perceber que somos parte de um todo, e que o nosso individualismo, sem compromisso com o conjunto
do País, e nossa miopia, na forma de olhar para o futuro, são as causas de todas as nossas epidemias. Talvez assim, diante
da tragédia que nos assola, tomaríamos consciência da necessidade de acabar com a imprevidência, a mãe de todas as epidemias.
Cristovam Buarque - é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT do Distrito Federal