12/01/2015

A adorável filha de mister Butler

Série “Perfil”, da Gazeta do Povo, retrata história da médica ginecologista e obstetra Helen Anne Butler Muralha. Ela foi a primeira conselheira mulher do CRM-PR, entre 1978 e 1983

“Ah, então a senhora é advogada da empresa de ônibus?”, disparou o lisboeta irritado à passageira que tentava tranquilizá-lo sobre os serviços da Viação Penha. Ele, o “reclamante”, era o poeta e escritor de obras infantojuvenis Sidónio Muralha. Ela, “a defensora”, a médica e musicista curitibana Helen Anne Butler.

“Não sou advogada, sou médica”, disparou. Ao que ouviu: “Entendi, a senhora dá atestado de óbitos”. Ao que lhe devolveu, com a precisão de um anestesista: “Não, senhor, faço partos...

Helen dava à luz “bebés”. Sidónio escrevia para crianças.

Naquela noite de 1970, na BR-116, discordaram sobre a qualidade do transporte interestadual, mas entenderam que tinham algo em comum, de uma vez para sempre.

clique para ampliar>clique para ampliarDra. Helen mostra o abacateiro do jardim da Fundação Sidónio Muralha (Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo)

Helen Anne Butler é alta, esguia, dona de grandes olhos azuis, destacados pelos cabelos presos em coque. Sua voz pausada, com todas as letras bem marcadas, soa como uma canção. Faz jus à soprano que poderia ter feito carreira nos palcos. “Eu tinha condições para tanto”, reconhece. Mas a Medicina venceu. Ela se formou em 1954, pela UFPR, uma das 13 mulheres em meio a 120 homens. Em pouco tempo estava entregue à obstetrícia.

O que mais lhe perguntam é quantos partos fez em 60 anos de ofício. Como não sabe, brinca de devolver o cálculo. Informa apenas que chegou a pilotar entre 20 e 30 nascimentos num mês. Por baixo, foram 240 por ano – algo como 14,4 mil bebês até aqui. “Ela pariu metade de Curitiba”, superfatura o arquiteto Key Imaguire Júnior, um dos muitos fãs confessos da médica.

Não raro, jovens namorados descobrem terem vindo ao mundo pelas mãos de Helen. Festejam a coincidência, ignorando sua altíssima probabilidade estatística. Há situações curiosas, como a das pessoas de cabeça branca que a cutucam quando a veem na rua: “A senhora fez o meu parto”. Ela ri e solta a piada nem sempre compreendida: “Acho que não.”

A doutora Helen completa 84 anos no próximo sábado – e ainda dá expediente em dois endereços: no consultório que mantém desde 1958, no Edifício Asa, Praça Osório; e na Fundação Sidónio Muralha, na Rua Desembargador Westphalen. Adora fazer os dois percursos a pé. É de sua natureza.

O viajante

O pai de Helen, Guilherme Butler, era um forte. Jovem, migrou da Letônia, no Leste Europeu, para o Brasil. Depois rumou para os Estados Unidos. Chegou a noivar por lá, mas seu espírito expedicionário – uma espécie de Coronel Fawcett – o atraía para a América do Sul. Nos anos 1910, voltou, para ser pastor batista em uma comunidade leta de Rio Novo, Santa Catarina. Ali conheceu Martha, com quem se casou, mudou para Curitiba e provou da fama. Mister Butler, como o chamavam, era morador da Rua Ratclif, 110 – hoje Westphalen – e lendário professor de inglês do Ginásio Paranaense, (Colégio Estadual do Paraná).

Merece uma biografia. Por suas origens, por suas aulas rigorosas, por suas viagens sertão adentro. Preparava-se meses para conquistar rincões da Amazônia, do Mato Grosso e de Goiás numa época em que essas aventuras significavam morte certa. Quando voltava, aclamado, relatava o saldo de sua aventura em páginas inteiras de jornais, debaixo de títulos sem floreios como “A minha viagem de férias à Amazônia”, publicado em O Dia no ano de 1934. Está tudo em álbuns guardados por Helen, a única filha, que conserva também uma coleção de frascos com águas de rios nos quais Butler se banhou, como o Negro e o Tapajós.

Ao se aposentar do magistério, ganhou o título de paraninfo. Seu inflamado discurso “As características de uma pessoa educada” saiu na íntegra na edição da Gazeta do Povo de 14 de dezembro de 1950, prova de seu prestígio.

Mister Butler morreu em 1962, aos 82 anos, em decorrência de um bloqueio cardíaco total. Foi uma comoção pública, para orgulho de Helen, que se perguntava se, algum dia, alguém se referiria a ela de outra forma que não “a filha de mister Butler”.

Aconteceu uma vez. Ela fazia residência em São Paulo. O pai apareceu para uma visita. Na volta, no ponto do ônibus, ouviu duas mulheres conversando sobre a excelente médica que tinham arranjado. Chamava-se Helen Butler.

Em tempo. Essa história de moça bem comportada poderia acabar aqui, ao som de “Carol of the Bells”, de Mykola Leontovych, uma das peças que tocou para a reportagem em seu piano Blüthner. Mas a mulher dada à música, nascida num lar que funcionava nas peias da pontualidade – “vício que herdei” – experimentou pelo menos dois descompassos. A eles.

O amado

O primeiro foi a escolha de Helen pela obstetrícia – uma área à prova de horários. Na mocidade, via-se impedida de acompanhar em excursão os corais nos quais cantava: sabia que os bebês desobedecem ao chegar. Por tempos teve uma chácara, mas ficava logo ali, no Jardim Schaffer, para que pudesse chegar mais rápido que as contrações das pacientes. Lembra de ter ficado 12, 16, 24 horas ao lado de parturientes. De três noites sem dormir, em partos seguidos. “Tem de observar a rotatividade da cabeça do nenê...”, comenta, com perícia, ao descrever o que pouca gente sabe fazer: o mundo da medicina se rendeu à lógica industrial das cesarianas.

Quanto ao segundo descompasso, atende pelo nome de Sidónio Muralha. A disciplinada Helen tinha quase 40 anos quando o conheceu. Não era o tipo de homem que vem para organizar. Para começar, tinha sido perseguido pela Pide – órgão de repressão do salazarismo. Na busca de se safar, mentiu para os capitalistas da multinacional Unilever que sabia falar francês. Foi sua estratégia para conseguir um emprego no Congo Belga, livrando-se dos espartilhos da ditadura.

Foi descoberto, recobrou o respeito e virou herói. Em 1960, Sidónio ajudou muitos belgas a fugirem do Congo quando a farra colonialista acabou. Arrumaram-lhe em prêmio, inclusive, um lugar na Bélgica, mas era homem dado a altas temperaturas. Queria o Rio de Janeiro, onde à frente da Editora Giroflé tentou fazer o que queria – escrever e publicar e inventar.

Como o Brasil não é para iniciantes – inclusive para os patrícios – o projeto não deu certo: Muralha perdeu perto de US$ 30 mil, dinheiro ganho como indenização por sua aventura na África. Economista com quatro filhos para criar, virava-se para sustentar aos seus ora na Unilever, ora dando consultoria financeira, ora o que pintasse. Talvez por isso estivesse nos cascos na noite em que conheceu Helen no ônibus.

Palitinhos

Sidónio e Helen foram amigos até que ela recebeu o ultimato do casamento, em 1978. Negociaram as condições. Ela abandonou a carreira de professora de Medicina na UFPR e PUCPR. Ele se mudou para Curitiba – o que não foi propriamente um bom negócio. Gostava dos céus altos da cidade, como dizia. Mas é curioso como um intelectual da estatura de Muralha, com mais de 20 livros publicados e o nome firmado no neorrealismo português, tenha passado de forma tão discreta pela capital. Era bem fácil achá-lo: batia ponto no Restaurante Enseada, no Rebouças, seu preferido.

Além de comer peixes, dedicava-se, ali, a uma tarefa que conquistaria qualquer mulher – incluindo a reservada Helen: escrevia poesias curtas nos palitos de madeira usados para mexer as caipirinhas. “Eu fui muito amada”, resume ela. Somaram cinco anos de casados, tempo embalado pela literatura e pela fleuma política do marido. Em 1982, Sidónio partiu levado pela rapidez traiçoeira das doenças hepáticas. Tinha 62 anos. Assim ela resume o poeta: “Sabia ser engraçado, contava charadas e fazia mágicas com copos”.

Depois dele, Helen voltou à vida comum. Passadas duas décadas de viuvez, aos 73 anos se casou de novo, com o calculista Themístocles Santos Júnior, morto em junho passado. Tinham a música e a religião em comum. “Virei Dona Flor e seus dois maridos”, brinca.

Na casa onde um dia viveram Martha e Guilherme Butler, na Westphalen, funciona hoje a Fundação Sidónio Muralha, de incentivo à leitura. Na porta, um verso dele: “Esta casa não é uma casa nascida no Sul, ela é uma asa voando no azul”. O local é Ponto de Cultura, do governo federal. No quintal dos fundos tem um abacateiro atingido por um raio. Não morreu. Helen batizou-a de “José Alencar” – não o escritor, mas o ex-vice-presidente, “que não morria nunca”. A filha do pontual mister Butler se senta ali, vez em quando, para umas horinhas de descuido. É de direito. Seu nome é Helen Muralha, afinal.

Fonte: Gazeta do Povo

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