16/07/2013
Cícero Urban
Não vou falar sobre as dificuldades materiais existentes no sistema de saúde brasileiro. Todos conhecemos muito bem essa realidade e os números que entristecem e nos envergonham como cidadãos. Mas vejo, não sem indignação, que esta decisão do governo é um desvio de tudo aquilo que temos propagado e lutado em todos estes anos em que lecionamos na faculdade de Medicina.
Os médicos não são culpados pela má gestão crônica e irresponsável na saúde. Padecemos também, junto com os nossos pacientes, pelas mesmas deficiências na infraestrutura, desorganização e injustiça que levam ao sofrimento de milhões de brasileiros.
Parece que aumentando o número de médicos, ou então melhorando a sua distribuição, poderíamos resolver tudo. E importar médicos e instituir um serviço médico obrigatório durante dois anos aos formandos que entrarem a partir de 2015 seria a solução mágica para um problema altamente complexo. Seria como tratarmos um câncer grave, que é uma doença crônica, apenas com um tratamento agudo e paliativo como uma aspirina. É claro, que no mundo real, isso não deve funcionar.
Este governo, que costuma reinventar a roda na economia (cujas consequências estamos todos vivenciando), agora também está fazendo o mesmo com a saúde. É verdade que o descaso com ela é histórico, e não nasceu nesta gestão. Entretanto, com medidas oportunistas como essa, corremos o risco de atrasar ainda mais as reformas que são urgentes e necessárias.
Mas, afinal, quem são os médicos brasileiros? Por que se recusam a ocupar os postos em tantas cidades onde poderiam ter salários dignos e muito superiores à maioria da população brasileira? Muitos talvez desconheçam, mas o médico, aqui no Brasil, tem, em sua maioria, uma formação técnica e humana muito boa, comparável à de muitos países desenvolvidos. Com a diferença de que somos preparados para tratar as doenças que afligem a nossa população. Mas, mais que isso, para aqueles que já viveram fora do Brasil e exerceram a medicina em outros países, podemos testemunhar que também somos muito mais próximos aos nossos pacientes.
Com os recursos escassos que temos, a falta de investimentos, a burocracia e a falta de planejamento, poucos médicos no mundo conseguiriam fazer até mesmo o que fazemos por aqui. Importar quem vive em outra realidade, sem mudar a realidade aqui, é, na linguagem científica, experiência. E nós, brasileiros, cobaias.
Não é verdade que o médico brasileiro não queira ir para as cidades pequenas ou trabalhar na periferia. Convivo com alunos de Medicina e muitos deles desejam trabalhar no interior. Mas é preciso ter infraestrutura adequada, não bastam bons salários. Tendo tudo isso, não seria nem mesmo necessário obrigar os novos médicos a realizar estágios remunerados; pelo contrário, talvez precisássemos até de concursos públicos.
A medicina exige uma dedicação contínua e um compromisso com o paciente. Hoje, estetoscópio e caneta, na era da biologia molecular, podem muito pouco. A imagem do médico-sacerdote, quase um mágico, não resolve mais os problemas atuais. Não basta ter o médico presente, sem uma equipe e infraestrutura adequada.
Ao reinventar a roda, o governo deixa de lado todas as experiências positivas existentes em outros países, e que poderiam ser aplicadas também aqui. Tal qual na televisão, estamos assistindo às mesmas novelas de novo, com formatos aparentemente mais modernos e dinâmicos. A história se repete. Mas, para um país como o nosso, repetir é ficar no passado e achar graça das formigas saindo do nariz do povo brasileiro.
Artigo escrito por Cícero Urban, médico mastologista, professor de Bioética e Metodologia Científica no curso de Medicina e na pós-graduação da Universidade Positivo.
Publicado no jornal Gazeta do Povo do dia 16 de julho de 2013.